São Paulo, segunda-feira, 06 de agosto de 2001

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ENTREVISTA DA 2ª

Flavio Bierrenbach considera "inadmissível" tratamento dado aos movimentos sociais

Ministro do STM condena arquivo secreto do Exército

Alan Marques/Folha Imagem
O advogado, ex-deputado e ministro do STM Flavio Bierrenbach, em seu gabinete no tribunal


ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Advogado, ex-deputado e militante dos direitos humanos, o ministro do STM (Superior Tribunal Militar) Flavio Bierrenbach considera "equívoco", "absurdo", "inadmissível" e "estupidez" classificar movimentos sociais como "forças adversas" e admitir "arranhar os direitos humanos" para defender a lei e a ordem.
Essa "estupidez", como disse ele, integra documentos oficiais do Exército revelados pela Folha na semana passada.
Bierrenbach, 61, considera a crise de segurança pública grave, mas é contra a criação de uma Guarda Nacional, a supervisão das polícias militares pelo Exército e instrumentos policiais para forças do Exército convocadas para manter a lei e a ordem.
Segue a entrevista concedida à Folha na sexta-feira, em seu gabinete do STM:
 

Folha - Qual o caráter da crise da segurança pública e das polícias? É uma crise de identidade, financeira, social, política?
Bierrenbach -
Acho que são todas essas crises e fatores a um só tempo e não tenho condições de estabelecer uma hierarquia entre eles. Crise de identidade? Com certeza. Crise financeira? Com certeza.
Os Estados e a União não têm recursos para coisa nenhuma. Hoje em dia, com essa preocupação neoliberal de Estado mínimo, de redução das atividades públicas, de sucateamento da máquina pública, eu faço uma pergunta: se todas as atividades ficassem com a iniciativa privada e o Estado fosse reduzido a uma única atividade, qual seria essa atividade? A Justiça, administrar a Justiça. E isso pressupõe a segurança.
Se o Estado abdicar de uma dessas funções, ele simplesmente deixa de ser Estado. A palavra Estado existe desde Maquiavel e significava uma nação com um governo institucionalizado e dotada de estabilidade. Estado e estabilidade têm a mesma raiz. Um Estado que deixa de ter estabilidade deixa de ser Estado. E um Estado que deixa de ter segurança pública deixa de ter estabilidade.

Folha - É isso que está ocorrendo no Brasil?
Bierrenbach -
É isso que nós estamos tendo, um problema agudo de segurança pública. As questões sociais todas servem para trazer uma massa enorme de despossuídos e desempregados para as cidades e dá nisso que a gente vê.

Folha - A crise de identidade da PM vem desde a Constituinte, que retirou a supervisão do Exército sobre ela? O que o sr. acha da volta dessa supervisão?
Bierrenbach -
A Polícia Militar já tinha vínculo com as Forças Armadas antes mesmo do regime de 1964. Os comandos das PMs, de modo geral, eram feitos por oficiais superiores do Exército. Ocorre que na República Velha as PMs eram instrumento de poder dos governos locais.

Folha - E a volta da supervisão do Exército agora?
Bierrenbach -
Polícia é uma atividade exclusivamente civil, não é atividade militar. Nos regimes democráticos, a polícia é civil e não há nenhuma razão para que não seja no Brasil. A polícia deve, sim, ser unificada. Nisso eu concordo.

Folha -O sr. não admite nenhum tipo de supervisão do Exército?
Bierrenbach -
Não, nenhum, nada, zero. Forças Armadas não são para isso. A definição que está no parágrafo 142 da Constituição é tradicional, com pequenas mudanças. Ali fala da manutenção da lei e da ordem e da defesa dos Poderes constituídos, mas isso compete aos três Poderes. Tanto que o artigo diz que qualquer um dos três pode acionar o Exército para exercer esses papéis em caso de necessidade. Mas esse artigo não foi regulamentado, e a regulamentação de um dispositivo desse da Constituição não pode ser feita por medida provisória como andam querendo. Tem que ser feito por lei complementar.

Folha - O que se vê hoje no caso das PMs é um empurra-empurra. Antes, os governadores queriam as PMs desvinculadas do Exército. Agora, querem supervisionadas por ele. Querem passar o abacaxi para a União, e a União não quer. Não é hora de discutir o efeito da desvinculação?
Bierrenbach -
Ninguém tem peito de resolver a questão.

Folha - Resolver como?
Bierrenbach -
Sem dinheiro, é difícil. É por isso que vêm com essa história de criar a Guarda Nacional. Não resolve nada. Vai ser mais um organismo sem dinheiro, descontente, ameaçando fazer greve. Guarda Nacional se justifica em país rico e que tenha Federação, como nos Estados Unidos. Nós não temos. Nossa Federação é uma ficção.

Folha - Bem, mas quais são as soluções?
Bierrenbach -
Uma delas é a unificação das polícias, que são estaduais, e nenhuma ingerência das Forças Armadas em atividade policial. Nenhuma, zero.

Folha - E o projeto de MP dando poder de polícia para as forças militares que agirem, por exemplo, no caso de greve das PMs?
Bierrenbach -
Isso é inconstitucional. Não pode ser feito por medida provisória, e o controle de constitucionalidade pode ser feito por qualquer juizinho de interior.

Folha - Setores do governo alegam que o Exército não pode cumprir o preceito constitucional de proteger a lei e a ordem sem instrumentos. Sem poder, por exemplo, prender quem ameace ambas. O que o sr. responde?
Bierrenbach -
Vou dar um exemplo. Quando acabou a guerra das Malvinas, entre Inglaterra e Argentina, havia dez mil soldados argentinos prisioneiros de guerra. No meio deles, uma centena de correspondentes. Um deles fez uma entrevista com o comandante inglês e, no meio, fez uma provocação contra a ditadura militar argentina: "O sr. acha que os militares devem se intrometer na política. Ele respondeu: "Claro que não. Nós, militares, somos treinados para lidar com inimigos, não com adversários". As Forças Armadas não negociam.

Folha - Mas a comparação é com a política, não com a Polícia Militar. A Constituição permite que o Exército aja como polícia para proteger a lei e a ordem. Como, sem instrumentos?
Bierrenbach -
A Constituição diz que pode, para proteger os Poderes constituídos.

Folha - E, se quiserem matar o governador, por exemplo, como devem agir os militares nesse tipo de missão?
Bierrenbach -
O governador tem a polícia.

Folha - E se a polícia está em greve?
Bierrenbach -
Se a polícia toda estiver em greve, se ele não tiver nem uma guarda pessoal leal, não tiver nem como defender o palácio, ele deixou de ser governador. Tem que ter intervenção federal.

Folha - Qual a sua proposta para a regulamentação por lei complementar?
Bierrenbach -
Isso é assunto para o Congresso.

Folha - Mas nós chegamos a um impasse, e o sr. não dá nenhuma solução?
Bierrenbach -
Para isso nós temos três Poderes. O Congresso legisla e fiscaliza o Executivo, e o Judiciário analisa as questões.
Eu não sei qual é a solução, porque sou de outro Poder. Estou falando como cidadão.

Folha - E sua posição como cidadão?
Bierrenbach -
Eu não quero dar minha opinião sobre isso.

Folha - O presidente do STM, ministro Olympio Pereira Silva Jr., levou a FHC a proposta de criminalizar o motim das PMs por medida provisória. Qual sua opinião?
Bierrenbach -
Repito: crime não se define por medida provisória, mas por lei federal e lei compete ao Congresso.

Folha - A posição dele, portanto, foi pessoal e o sr. discorda?
Bierrenbach -
Ele próprio ressaltou isso, que era pessoal.

Folha -O sr. é contra a Guarda Nacional, a supervisão do Exército e instrumentos de polícia para quando o Exército assuma funções de polícia. Então, não há o que fazer na crise?
Bierrenbach -
Quem deve responder é o Congresso. Na democracia, cada macaco no seu galho.

Folha - Qual a sua opinião sobre a reportagem da Folha sobre o Exército e os movimentos populares, como o MST?
Bierrenbach -
Na democracia, quem diz o que quer de suas Forças Armadas é a Constituição, depois, a lei. Quem diz como quer é o presidente da República, comandante geral de todas as Forças Armadas. Se elas extrapolam a lei, o controle é do Judiciário.

Folha -Os documentos do Exército classificam os movimentos sociais como "forças adversas" e admitem "arranhar direitos dos cidadãos" para manter a lei e a ordem. O que sr. acha disso?
Bierrenbach -
A primeira parte eu acho um equívoco, e a segunda, um absurdo.
Um Estado só sobrevive tendo informações. A atividade de informações, portanto, é essencial ao Estado. Como o governo vai obter essas informações? Dentro da lei e da Constituição. Equiparar movimento social com narcotráfico ou coisas assim é um equívoco. E arranhar direitos humanos é inadmissível.

Folha - Que tipo de punição cabe para quem escreve, debate e divulga esse tipo de coisa?
Bierrenbach -
Isso eu não posso dizer. Se eventualmente uma pessoa que tiver praticado esses atos equivocados e estúpidos vier a ser julgada pelo tribunal, eu terei que participar desse julgamento. Estou impedido de comentar.



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