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ENTREVISTA DA 2ª
EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
Giannetti elogia política macroeconômica, mas diz que chance de corrigir "federalismo truncado" foi desperdiçada
Economista vê risco de guinada populista em cenário de crise
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
A conversão ideológica à direita
do grupo dirigente petista durante a campanha eleitoral de 2002
abre precedente para uma outra,
segundo o economista Eduardo
Giannetti da Fonseca, 46. Luiz
Inácio Lula da Silva pode dar uma
guinada populista na segunda
metade do seu mandato, ele diz.
A possibilidade se baseia, segundo o professor do Ibmec, na
fragilidade ideológica contida no
movimento que culminou na
"Carta ao Povo Brasileiro", em
que Lula se comprometeu com a
ortodoxia macroeconômica, no
curso da campanha eleitoral.
"Com a mesma ligeireza e superficialidade com que eles mudaram de orientação doutrinária
a seis meses da eleição, eles podem mudar, em outra direção, se
a coisa complicar muito", afirma.
O cenário em que "a coisa complica muito" é o de crise econômica, com dificuldade de crescimento sustentado e aumento da tensão social. Nesse momento, ele
avalia, a base de sustentação do
governo, "fisiológica", se desfaria
com grande facilidade e, então, a
"tentação de uma guinada populista será muito forte".
Esse seria o pior cenário, ele diz.
O melhor, de toda forma, já teria
sido perdido. Giannetti avalia que
o governo desperdiçou a oportunidade de, na reforma tributária,
mudar o que chama de "federalismo truncado". Por "falta de projeto" nessa reforma, declara o
economista, o governo repete a
solução de aumentar a carga tributária para pagar o custo de um
Estado conceitualmente equivocado. A seguir, trechos da entrevista, concedida no escritório de
sua casa, em São Paulo.
Folha - No seu livro "Nada é Tudo", o sr. cita uma frase de Milton
Friedman: "Um novo governo, com
a intenção de fazer importantes
mudanças em seu país, tem de seis
a nove meses para fazê-lo. É o período da lua-de-mel. Passada essa
fase inicial, a tirania do status quo
se impõe. [...] A partir desse ponto,
pouco poderá ser feito". Isso vale
para o governo Lula? Eles aproveitaram esse momento?
Eduardo Giannetti da Fonseca -
Acho que se aplica. O capital político de qualquer governante tende a se depreciar ao longo do
mandato. A pergunta aí é saber
até que ponto Lula tirou o melhor
proveito possível desse capital político que ele recebeu.
Ele usou muito bem o capital na
política econômica, contendo
uma ameaça de aceleração inflacionária que se tornou preocupante no último trimestre de
2002. Aqui, ele foi bem sucedido.
Onde o governo desapontou foi
nas propostas de reformas estruturais, especialmente na reforma
tributária. Havia uma chance, no
início do mandato, de repensar de
forma abrangente e corajosa a
maneira como se arrecada e se
gasta tributos no país. Essa chance foi perdida e dificilmente ela
vai voltar ao longo do mandato.
Folha - Por quê?
Giannetti - Por uma questão de
falta de projeto definido. E por falta de ousadia também.
Acho que havia três reformas
importantes: Previdência, fiscal e
trabalhista. O governo elegeu a
Previdência e a reforma tributária. Na Previdência, agiu com coragem e na direção certa. No caso
da tributária, mais do que desapontador, realmente não se toca
na essência da anomalia tributária em que o Brasil está metido. É
por isso que não vejo essa recuperação cíclica se tornando um crescimento econômico sustentado e
alto. Na melhor das hipóteses, isso se tornará um crescimento sustentado moderado, algo em torno
de 3% a 3,5% ao ano.
Folha - Mas vamos ter alguma recuperação agora, não é?
Giannetti - Isso é bem claro e está a caminho. O problema é até
que ponto essa recuperação se
transforma em um crescimento
sustentável e alto. Minha resposta
é que na melhor das hipóteses teremos um crescimento sustentado moderado. Isso se tudo correr
bem, com céu de brigadeiro.
Folha - A tributária era a chave
para intensificar o crescimento?
Giannetti - Mais do que a tributária, a fiscal. Vou fazer uma provocação: a década de 90 é percebida como uma década de neoliberalismo no Brasil. Só que, nessa
década, a carga tributária passou
de 26% do PIB para 36%. Mais de
um terço do valor criado anualmente pelo trabalho é automaticamente recolhido pelo Estado na
forma de taxas, impostos e contribuições -estou falando de
União, Estados e municípios. Estamos falando de um país de renda média que tem
uma carga de país
com Estado de
bem-estar social
montado.
Com tal aumento de carga, esperaríamos um
equilíbrio das
contas públicas. O
Estado hoje no
Brasil tem um déficit nominal da
ordem de 4% a
5% do PIB. Note
que 40% da renda
brasileira passa
pelo setor público
-é uma coisa gigantesca, uma
enormidade. A
renda nacional
brasileira passa a
ser do Estado, que
não investe quase nada.
Não está transformando esses
recursos em investimento, em
formação de capital, infra-estrutura, programas sociais, saúde
pública. Então tem alguma coisa
profundamente errada nas finanças públicas brasileiras.
Folha - Isso se agravou no governo Fernando Henrique Cardoso.
Giannetti - Sim. Ele levou a acomodação fiscal no Brasil ao limite
em duas frentes: a do aumento da
carga tributária e a do endividamento interno, que é jogar a conta
para as gerações futuras. Aumento da carga tributária é jogar a
conta para a geração atual.
O Lula herda uma situação em
que ele não vai poder continuar,
ao longo do mandato, acomodando o desequilíbrio fiscal por meio
de mais carga tributária ou mais
endividamento. Qual é o problema de um Estado que faz uma intermediação de 40% da renda e
investe tão pouco? Ele está se
apropriando de uma fatia enorme
da poupança do setor privado,
que poderia estar sendo investida,
e está transformando isso em
consumo corrente.
Folha - Mas o argumento à esquerda é de que o governo gasta
esse dinheiro com compromissos
externos e com o endividamento.
Giannetti - Externo é muito pouco. Há três itens que realmente
pesam no orçamento do Estado
hoje. Os juros da dívida interna
-cerca de 7% a 8% do PIB. E déficit previdenciário -5,5% do
PIB. Um Estado que gasta com
dois itens de despesa algo em torno de 13% do PIB está numa grande encrenca.
O terceiro ponto é o nosso mal
resolvido federalismo, que apareceu com muita virulência agora
na reforma tributária. É incrível o descaramento dos entes federativos na tentativa
de arrancar cada um
para si uma fatia
maior do bolo.
Esse federalismo
truncado, criado pela
Constituição de 88,
não é mais o modelo
centralizador do regime militar, mas não
virou um modelo de
Estado federativo; ficou no meio do caminho, um modelo híbrido, jogando a conta para a sociedade.
Deixa eu pegar os
números. De 88 a
2001, a receita disponível dos municípios
cresceu 141% em termos reais -era 2,4% do PIB em
88, hoje é 5,8% do PIB. Nos Estados, no mesmo período, aumentou 49% em termos reais -era
6% do PIB, agora é 9%. Some os
dois e eles tiveram um ganho real
líquido de 6,4% do PIB. Aí você
pensa: "era o desenho da Constituição, um Estado federativo, que
significa que Estados e municípios vão ter uma fatia maior do
bolo; a União deve ter encolhido".
Você vai ver os dados da União e,
no mesmo período, aumentou
37% em termos reais a receita disponível -de 14% do PIB para
19,3%.
A sociedade brasileira, que estava acostumada a carregar um Estado nas costas, agora carrega
dois. Esse federalismo truncado
sobrepôs um Estado a outro, em
vez de trocar um modelo por outro. Isso aparece agora com muita
força na reforma tributária.
A maneira que a União encontrou para preservar sua receita
disponível -dado que pela Constituição ela teria que obrigatoriamente repartir com Estados e municípios- foi a descoberta da
brecha das contribuições para finalidade específica.
A contribuição é sobre o faturamento, uma coisa horrível do
ponto de vista de eficiência tributária. Elimina a chance de uma
empresa de porte médio, num
ambiente competitivo, de viver.
Ela vai para a informalidade.
Folha - Se a oportunidade foi perdida para a reforma tributária, o
que o sr. espera agora?
Giannetti - O que poderia ser
uma reforma para aliviar o setor
produtivo e aumentar a capacidade de investimento do setor privado está virando mais uma tentativa do Estado brasileiro de jogar a
conta da sua indefinição e do seu
desastre conceitual para o resto
da sociedade. Essa negociação entre União, Estados e municípios
vai terminar com aumento da
carga tributária. Só que já estamos
no limite da carga no Brasil.
Em vez de a sociedade se organizar para pressionar e mostrar o
seu descontentamento diante
desse avanço, nossa reação é selvagem, anárquica. É o salve-se
quem puder da informalidade.
Essa é uma tradição antiga no
Brasil. Como é que o Machado de
Assis descreve o financiamento
do hospício em "O Alienista"? Inventou-se um imposto sobre os
enfeites em cortejos fúnebres.
Ninguém sabia quanto poderia
arrecadar, e arrecadou-se mais do
que estava previsto. Sobrou dinheiro em Itaguaí.
Folha - Uma crítica a esse governo é que lhe falta projeto econômico. O sr. concorda?
Giannetti - Isso
aconteceu também no primeiro
mandato do FHC.
Ele fez uma campanha em torno
de bandeiras de
reformas e quando assumiu percebeu-se que não tinha proposta. Demorou muito para começar a ter
uma idéia do desenho básico das
propostas.
Folha - O sr. acha
comparáveis os
dois momentos?
Giannetti -
Acho. Temos
muita dificuldade
de partidos na
oposição de terem
projeto. Olha o programa apresentado pelo PSDB na primeira
eleição do FHC. Nada daquilo foi
implementado nos oito anos de
fato. E não tinha um grau de detalhamento para, no início do mandato, como o capital político permite, deflagrar esse processo.
No caso do PT aconteceu o mesmo, porém com um agravante. O
PT mudou de orientação programática na campanha, de maneira
superficial, sem discussão mesmo
dentro do partido que justificasse
tamanha guinada.
Acompanhei de perto, porque
morei na Inglaterra, a mudança
do Partido Trabalhista inglês, que
ficou 20 anos na oposição. Só que
para chegar ao "New Labor" eles
mudaram três vezes a cúpula e a
liderança do partido. Houve um
processo exaustivo de discussão
sobre as mudanças necessárias
para eles se viabilizarem como alternativa de poder.
No caso brasileiro, foi a mesma
liderança que, quase na véspera
da eleição, num conchavo de cúpula, mudou a orientação programática do partido. Qual a implicação disso para o futuro? Acho
que, com a mesma facilidade com
que eles mudaram sob pressão
durante a campanha a sua orientação programática, eles podem
mudar outra vez ao longo do
mandato, em outras circunstâncias, em outra direção.
Folha - O sr. acha que ele pode
voltar a ter uma posição mais marcadamente de esquerda? Sob quais
pressões?
Giannetti - Vamos supor que a
tensão social aumente, que a economia não alcance sequer um
crescimento moderado, que o desemprego continue muito alto e o
capital se deprecie. Essa base de
sustentação do governo é fisiológica.
Não preciso dar nomes aos bois, mas é
incrível ver velhas
oligarquias regionais
de volta, quando Fernando Henrique
considerou seu grande mérito ter eliminado essas oligarquias. Elas voltaram
com o PT.
Esse arranjo fisiológico de base de sustentação tem um jogo muito claro. Basta
o governo começar a
enfraquecer para eles
começarem a pedir
muito mais para continuarem na base.
Nesse momento, e aí
já estamos falando da
metade do mandato para a frente,
a tentação de uma guinada populista será muito forte.
Ou seja: maior tolerância com a
inflação, aumentar o gasto público, comprometendo a estabilidade da relação dívida/PIB.
Folha - O sr. vê a possibilidade de
Lula cumprir esse papel?
Giannetti - Acho que sim. Essa
hipótese não pode ser descartada.
E aí é o meu ponto: com a mesma
ligeireza e superficialidade com
que eles mudaram de orientação
doutrinária a seis meses da eleição, eles podem mudar, em outra
direção, na segunda metade do
mandato se a coisa complicar. O
jogo de poder domina o resto.
Folha - É mais forte que os compromissos ideológicos?
Giannetti - É. As elites usam
crenças de acordo com suas ambições de poder. Elas não têm
crenças, simplesmente buscam o
poder. Adaptam suas crenças de
modo a manter ou alcançar o poder. Isso não é feito de má-fé. A
pessoa faz isso com a maior inocência e boa-fé do mundo. O político tem esse dom de iludir dizendo a verdade. E de se auto-iludir.
Folha - Para além das reformas,
ainda nos falta um projeto de país?
Giannetti - Vamos supor que tudo dê certo. Que o governo, se não
resolver, ao menos diminua muito nossas dívidas sociais, todas as
heranças e as mazelas do nosso
subdesenvolvimento secular. A
que pode aspirar ser o Brasil? Virar uma espécie de EUA pobre?
Acho que não. Mas então o que
pode nos diferenciar? O que o país
teria de original a dizer?
Olhando para o passado, tendo
a dizer que no final dos anos 50,
nós estivemos muito perto de oferecer alguma novidade importante. Foi um momento de muita felicidade e de florescimento cultural. O Juscelino, apesar dessa minha crítica a ele como condutor
da política econômica, teve um
dom de liderança que foi infundir
na sociedade brasileira um sonho
de país, e de mobilizar uma energia que estava latente.
Folha - Mas o Lula não fez a mesma coisa?
Giannetti - Acho que o Lula ainda está com uma agenda muito
negativa. Está olhando para trás.
"Vamos resolver a fome." Está correto. Não dá para sonhar muito
enquanto a nossa vida material é
tão precária. Mas como é que se
estabelecem no nosso país as condições para que haja a volta de um
projeto de futuro?
Encontrei essa frase do Dostoievski num ensaio do André Gide, que me deixou com a imaginação muito acesa: "Se um grande povo não acreditar que a verdade somente pode ser encontrada nele mesmo, se ele não crer que
ele apenas está apto a se erguer e a
redimir a todos por meio da sua
verdade, ele prontamente se rebaixa à condição de material etnográfico, e não de um grande
povo. Uma nação que perde essa
crença deixa de ser uma nação".
Havia uma
chance, no início
do mandato, de
repensar [...] a
maneira como
se arrecada e se
gasta tributos
no país. Essa
chance foi
perdida
Essa base de sustentação do governo é fisiológica. Não preciso dar nomes
aos bois, mas é
incrível ver velhas oligarquias
regionais
de volta
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