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São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA

Giannetti elogia política macroeconômica, mas diz que chance de corrigir "federalismo truncado" foi desperdiçada

Economista vê risco de guinada populista em cenário de crise

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

A conversão ideológica à direita do grupo dirigente petista durante a campanha eleitoral de 2002 abre precedente para uma outra, segundo o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, 46. Luiz Inácio Lula da Silva pode dar uma guinada populista na segunda metade do seu mandato, ele diz.
A possibilidade se baseia, segundo o professor do Ibmec, na fragilidade ideológica contida no movimento que culminou na "Carta ao Povo Brasileiro", em que Lula se comprometeu com a ortodoxia macroeconômica, no curso da campanha eleitoral.
"Com a mesma ligeireza e superficialidade com que eles mudaram de orientação doutrinária a seis meses da eleição, eles podem mudar, em outra direção, se a coisa complicar muito", afirma.
O cenário em que "a coisa complica muito" é o de crise econômica, com dificuldade de crescimento sustentado e aumento da tensão social. Nesse momento, ele avalia, a base de sustentação do governo, "fisiológica", se desfaria com grande facilidade e, então, a "tentação de uma guinada populista será muito forte".
Esse seria o pior cenário, ele diz. O melhor, de toda forma, já teria sido perdido. Giannetti avalia que o governo desperdiçou a oportunidade de, na reforma tributária, mudar o que chama de "federalismo truncado". Por "falta de projeto" nessa reforma, declara o economista, o governo repete a solução de aumentar a carga tributária para pagar o custo de um Estado conceitualmente equivocado. A seguir, trechos da entrevista, concedida no escritório de sua casa, em São Paulo.
 

Folha - No seu livro "Nada é Tudo", o sr. cita uma frase de Milton Friedman: "Um novo governo, com a intenção de fazer importantes mudanças em seu país, tem de seis a nove meses para fazê-lo. É o período da lua-de-mel. Passada essa fase inicial, a tirania do status quo se impõe. [...] A partir desse ponto, pouco poderá ser feito". Isso vale para o governo Lula? Eles aproveitaram esse momento?
Eduardo Giannetti da Fonseca -
Acho que se aplica. O capital político de qualquer governante tende a se depreciar ao longo do mandato. A pergunta aí é saber até que ponto Lula tirou o melhor proveito possível desse capital político que ele recebeu.
Ele usou muito bem o capital na política econômica, contendo uma ameaça de aceleração inflacionária que se tornou preocupante no último trimestre de 2002. Aqui, ele foi bem sucedido.
Onde o governo desapontou foi nas propostas de reformas estruturais, especialmente na reforma tributária. Havia uma chance, no início do mandato, de repensar de forma abrangente e corajosa a maneira como se arrecada e se gasta tributos no país. Essa chance foi perdida e dificilmente ela vai voltar ao longo do mandato.

Folha - Por quê?
Giannetti -
Por uma questão de falta de projeto definido. E por falta de ousadia também.
Acho que havia três reformas importantes: Previdência, fiscal e trabalhista. O governo elegeu a Previdência e a reforma tributária. Na Previdência, agiu com coragem e na direção certa. No caso da tributária, mais do que desapontador, realmente não se toca na essência da anomalia tributária em que o Brasil está metido. É por isso que não vejo essa recuperação cíclica se tornando um crescimento econômico sustentado e alto. Na melhor das hipóteses, isso se tornará um crescimento sustentado moderado, algo em torno de 3% a 3,5% ao ano.

Folha - Mas vamos ter alguma recuperação agora, não é?
Giannetti -
Isso é bem claro e está a caminho. O problema é até que ponto essa recuperação se transforma em um crescimento sustentável e alto. Minha resposta é que na melhor das hipóteses teremos um crescimento sustentado moderado. Isso se tudo correr bem, com céu de brigadeiro.

Folha - A tributária era a chave para intensificar o crescimento?
Giannetti -
Mais do que a tributária, a fiscal. Vou fazer uma provocação: a década de 90 é percebida como uma década de neoliberalismo no Brasil. Só que, nessa década, a carga tributária passou de 26% do PIB para 36%. Mais de um terço do valor criado anualmente pelo trabalho é automaticamente recolhido pelo Estado na forma de taxas, impostos e contribuições -estou falando de União, Estados e municípios. Estamos falando de um país de renda média que tem uma carga de país com Estado de bem-estar social montado.
Com tal aumento de carga, esperaríamos um equilíbrio das contas públicas. O Estado hoje no Brasil tem um déficit nominal da ordem de 4% a 5% do PIB. Note que 40% da renda brasileira passa pelo setor público -é uma coisa gigantesca, uma enormidade. A renda nacional brasileira passa a ser do Estado, que não investe quase nada.
Não está transformando esses recursos em investimento, em formação de capital, infra-estrutura, programas sociais, saúde pública. Então tem alguma coisa profundamente errada nas finanças públicas brasileiras.

Folha - Isso se agravou no governo Fernando Henrique Cardoso.
Giannetti -
Sim. Ele levou a acomodação fiscal no Brasil ao limite em duas frentes: a do aumento da carga tributária e a do endividamento interno, que é jogar a conta para as gerações futuras. Aumento da carga tributária é jogar a conta para a geração atual.
O Lula herda uma situação em que ele não vai poder continuar, ao longo do mandato, acomodando o desequilíbrio fiscal por meio de mais carga tributária ou mais endividamento. Qual é o problema de um Estado que faz uma intermediação de 40% da renda e investe tão pouco? Ele está se apropriando de uma fatia enorme da poupança do setor privado, que poderia estar sendo investida, e está transformando isso em consumo corrente.

Folha - Mas o argumento à esquerda é de que o governo gasta esse dinheiro com compromissos externos e com o endividamento.
Giannetti -
Externo é muito pouco. Há três itens que realmente pesam no orçamento do Estado hoje. Os juros da dívida interna -cerca de 7% a 8% do PIB. E déficit previdenciário -5,5% do PIB. Um Estado que gasta com dois itens de despesa algo em torno de 13% do PIB está numa grande encrenca.
O terceiro ponto é o nosso mal resolvido federalismo, que apareceu com muita virulência agora na reforma tributária. É incrível o descaramento dos entes federativos na tentativa de arrancar cada um para si uma fatia maior do bolo.
Esse federalismo truncado, criado pela Constituição de 88, não é mais o modelo centralizador do regime militar, mas não virou um modelo de Estado federativo; ficou no meio do caminho, um modelo híbrido, jogando a conta para a sociedade.
Deixa eu pegar os números. De 88 a 2001, a receita disponível dos municípios cresceu 141% em termos reais -era 2,4% do PIB em 88, hoje é 5,8% do PIB. Nos Estados, no mesmo período, aumentou 49% em termos reais -era 6% do PIB, agora é 9%. Some os dois e eles tiveram um ganho real líquido de 6,4% do PIB. Aí você pensa: "era o desenho da Constituição, um Estado federativo, que significa que Estados e municípios vão ter uma fatia maior do bolo; a União deve ter encolhido". Você vai ver os dados da União e, no mesmo período, aumentou 37% em termos reais a receita disponível -de 14% do PIB para 19,3%.
A sociedade brasileira, que estava acostumada a carregar um Estado nas costas, agora carrega dois. Esse federalismo truncado sobrepôs um Estado a outro, em vez de trocar um modelo por outro. Isso aparece agora com muita força na reforma tributária.
A maneira que a União encontrou para preservar sua receita disponível -dado que pela Constituição ela teria que obrigatoriamente repartir com Estados e municípios- foi a descoberta da brecha das contribuições para finalidade específica.
A contribuição é sobre o faturamento, uma coisa horrível do ponto de vista de eficiência tributária. Elimina a chance de uma empresa de porte médio, num ambiente competitivo, de viver. Ela vai para a informalidade.

Folha - Se a oportunidade foi perdida para a reforma tributária, o que o sr. espera agora?
Giannetti -
O que poderia ser uma reforma para aliviar o setor produtivo e aumentar a capacidade de investimento do setor privado está virando mais uma tentativa do Estado brasileiro de jogar a conta da sua indefinição e do seu desastre conceitual para o resto da sociedade. Essa negociação entre União, Estados e municípios vai terminar com aumento da carga tributária. Só que já estamos no limite da carga no Brasil.
Em vez de a sociedade se organizar para pressionar e mostrar o seu descontentamento diante desse avanço, nossa reação é selvagem, anárquica. É o salve-se quem puder da informalidade. Essa é uma tradição antiga no Brasil. Como é que o Machado de Assis descreve o financiamento do hospício em "O Alienista"? Inventou-se um imposto sobre os enfeites em cortejos fúnebres. Ninguém sabia quanto poderia arrecadar, e arrecadou-se mais do que estava previsto. Sobrou dinheiro em Itaguaí.

Folha - Uma crítica a esse governo é que lhe falta projeto econômico. O sr. concorda?
Giannetti -
Isso aconteceu também no primeiro mandato do FHC. Ele fez uma campanha em torno de bandeiras de reformas e quando assumiu percebeu-se que não tinha proposta. Demorou muito para começar a ter uma idéia do desenho básico das propostas.

Folha - O sr. acha comparáveis os dois momentos?
Giannetti -
Acho. Temos muita dificuldade de partidos na oposição de terem projeto. Olha o programa apresentado pelo PSDB na primeira eleição do FHC. Nada daquilo foi implementado nos oito anos de fato. E não tinha um grau de detalhamento para, no início do mandato, como o capital político permite, deflagrar esse processo.
No caso do PT aconteceu o mesmo, porém com um agravante. O PT mudou de orientação programática na campanha, de maneira superficial, sem discussão mesmo dentro do partido que justificasse tamanha guinada.
Acompanhei de perto, porque morei na Inglaterra, a mudança do Partido Trabalhista inglês, que ficou 20 anos na oposição. Só que para chegar ao "New Labor" eles mudaram três vezes a cúpula e a liderança do partido. Houve um processo exaustivo de discussão sobre as mudanças necessárias para eles se viabilizarem como alternativa de poder.
No caso brasileiro, foi a mesma liderança que, quase na véspera da eleição, num conchavo de cúpula, mudou a orientação programática do partido. Qual a implicação disso para o futuro? Acho que, com a mesma facilidade com que eles mudaram sob pressão durante a campanha a sua orientação programática, eles podem mudar outra vez ao longo do mandato, em outras circunstâncias, em outra direção.

Folha - O sr. acha que ele pode voltar a ter uma posição mais marcadamente de esquerda? Sob quais pressões?
Giannetti -
Vamos supor que a tensão social aumente, que a economia não alcance sequer um crescimento moderado, que o desemprego continue muito alto e o capital se deprecie. Essa base de sustentação do governo é fisiológica. Não preciso dar nomes aos bois, mas é incrível ver velhas oligarquias regionais de volta, quando Fernando Henrique considerou seu grande mérito ter eliminado essas oligarquias. Elas voltaram com o PT.
Esse arranjo fisiológico de base de sustentação tem um jogo muito claro. Basta o governo começar a enfraquecer para eles começarem a pedir muito mais para continuarem na base. Nesse momento, e aí já estamos falando da metade do mandato para a frente, a tentação de uma guinada populista será muito forte.
Ou seja: maior tolerância com a inflação, aumentar o gasto público, comprometendo a estabilidade da relação dívida/PIB.

Folha - O sr. vê a possibilidade de Lula cumprir esse papel?
Giannetti -
Acho que sim. Essa hipótese não pode ser descartada. E aí é o meu ponto: com a mesma ligeireza e superficialidade com que eles mudaram de orientação doutrinária a seis meses da eleição, eles podem mudar, em outra direção, na segunda metade do mandato se a coisa complicar. O jogo de poder domina o resto.

Folha - É mais forte que os compromissos ideológicos?
Giannetti -
É. As elites usam crenças de acordo com suas ambições de poder. Elas não têm crenças, simplesmente buscam o poder. Adaptam suas crenças de modo a manter ou alcançar o poder. Isso não é feito de má-fé. A pessoa faz isso com a maior inocência e boa-fé do mundo. O político tem esse dom de iludir dizendo a verdade. E de se auto-iludir.

Folha - Para além das reformas, ainda nos falta um projeto de país?
Giannetti -
Vamos supor que tudo dê certo. Que o governo, se não resolver, ao menos diminua muito nossas dívidas sociais, todas as heranças e as mazelas do nosso subdesenvolvimento secular. A que pode aspirar ser o Brasil? Virar uma espécie de EUA pobre? Acho que não. Mas então o que pode nos diferenciar? O que o país teria de original a dizer?
Olhando para o passado, tendo a dizer que no final dos anos 50, nós estivemos muito perto de oferecer alguma novidade importante. Foi um momento de muita felicidade e de florescimento cultural. O Juscelino, apesar dessa minha crítica a ele como condutor da política econômica, teve um dom de liderança que foi infundir na sociedade brasileira um sonho de país, e de mobilizar uma energia que estava latente.

Folha - Mas o Lula não fez a mesma coisa?
Giannetti -
Acho que o Lula ainda está com uma agenda muito negativa. Está olhando para trás. "Vamos resolver a fome." Está correto. Não dá para sonhar muito enquanto a nossa vida material é tão precária. Mas como é que se estabelecem no nosso país as condições para que haja a volta de um projeto de futuro?
Encontrei essa frase do Dostoievski num ensaio do André Gide, que me deixou com a imaginação muito acesa: "Se um grande povo não acreditar que a verdade somente pode ser encontrada nele mesmo, se ele não crer que ele apenas está apto a se erguer e a redimir a todos por meio da sua verdade, ele prontamente se rebaixa à condição de material etnográfico, e não de um grande povo. Uma nação que perde essa crença deixa de ser uma nação".

Havia uma chance, no início do mandato, de repensar [...] a maneira como se arrecada e se gasta tributos no país. Essa chance foi perdida

Essa base de sustentação do governo é fisiológica. Não preciso dar nomes aos bois, mas é incrível ver velhas oligarquias regionais de volta


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