São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005

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COMENTÁRIO/CÚPULA DAS AMÉRICAS

Chávez ironiza Bush, que elogia Lula, que aplaude Kirchner

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MAR DEL PLATA

A 4ª Cúpula das Américas terminou mais ou menos como um dos mais célebres poemas de Carlos Drummond de Andrade: Hugo Chávez ironizou os Estados Unidos de George Walker Bush, que elogiou Luiz Inácio Lula da Silva, que aplaudiu o discurso do argentino Néstor Kirchner, que atacara duramente os Estados Unidos na véspera.
Mesmo assim, como diz um antigo ditado argentino, "la sangre no llegó al rio", no caso o rio da Prata, em cujas margens reuniram-se de sexta-feira até ontem representantes dos 34 países americanos, excluída apenas Cuba, de todo modo presente nas lembranças de Chávez. O venezuelano chamou, no comício da "outra cúpula", o menino cubano Lazarito ao centro do palco, apresentou-o ao púbico e o precoce mas bem treinado garoto gritou ao microfone "pátria o muerte" (faltou o "venceremos"), como se fosse um "revival" dos anos 60.
De volta a 2005 e na cúpula oficial, no entanto, Chávez não usou sua retórica incendiária. Preferiu a fina ironia. Lembrou que os dois países desenvolvidos das Américas (sem dizer que são EUA e Canadá) se tornaram desenvolvidos exatamente porque não usaram a receita dita neoliberal que agora gostam de vender aos seus parceiros americanos.
"O pior é que é verdade", ouviu-se baixinho, na bancada ocupada pelos delegados brasileiros.
Mas também é verdade que Chávez não usa linguagem de estádio de futebol na presença de Bush porque, retórica à parte, o fato é que o maior comprador de produtos venezuelanos são os Estados Unidos (por conta do petróleo). E, por isso mesmo, Chávez pode despreocupadamente pretender sepultar a Alca: não precisa dela para abrir o mercado norte-americano, que já está aberto para o petróleo da Venezuela -e assim vai continuar com ou sem Alca.
George Walker Bush também não repetiu as críticas e ameaças, às vezes sinistras, que seus assessores mais "neocons" (neo-conservadores) usam contra Chávez. A diplomacia brasileira gosta de acreditar que tem parte do mérito pela moderação: uma e outra vez, os brasileiros do governo Lula dizem aos norte-americanos que Chávez veio para ficar e é melhor tentar conviver com ele do que desestabilizá-lo, o que poderia levar a um incêndio regional.
Se Bush ouviu tais recomendações, ninguém diz. Mas ele, no seu discurso aos pares americanos, fez dois elogios a Luiz Inácio Lula da Silva. Primeiro, previsível e de cortesia, pelos programas sociais, em especial o "Fome Zero". Depois, menos previsível, ao fato de que a experiência sindical forjou Lula como "duro negociador".
Ou, posto de outra forma, Bush, ele também duro negociador, não se mostrou especialmente incomodado pelo fato de o Brasil de Lula ter sido ator coadjuvante na resistência oferecida pelo Mercosul à disposição norte-americana (e canadense e mexicana e de mais 25 países) para acelerar as negociações em torno da Alca.
Aliás, Bush, em seu discurso defendeu, como é óbvio, o livre comércio, mantra que é uma de suas marcas registradas, mas, ao menos pela leitura feita pela delegação brasileira, não deu ao discurso o caráter de receituário obrigatório, como costuma ser comum na oratória das personalidades do governo norte-americano, seja qual for o presidente.
É justamente esse Bush tipo "paz e amor" que o governo brasileiro espera hoje em Brasília. Espera mais: uma boa notícia em torno da investigação que os Estados Unidos fazem compulsoriamente sobre o respeito por parte do Brasil dos direitos de propriedade intelectual (ou, visto pelo lado negativo, se o Brasil reprime ou não a pirataria).
A ameaça que antecedia a visita, embora não relacionada com ela, era a de fazer o Brasil perder vantagens que hoje goza no mercado norte-americano, conforme o SGP (Sistema Geral de Preferências), por ser suposta ou realmente leniente com a pirataria. A boa notícia, se confirmada, seria logicamente a eliminação da ameaça.
Mas nem a expectativa de que o Bush seja "paz e amor" fez com que Lula, no seu próprio discurso, adotasse tática idêntica. Ao contrário, o presidente brasileiro preferiu elogiar rasgadamente o discurso de abertura da cúpula proferido pelo seu parceiro-rival-de novo-parceiro Néstor Kirchner na véspera. Kirchner não poupou críticas aos Estados Unidos e aos organismos financeiros internacionais cujas políticas são ditadas, quase sempre, pelos EUA.
Não que Lula tivesse em mente apunhalar Bush pelas costas, usando as palavras de Kirchner. Não. Quis só enfatizar que a grande vantagem das cúpulas ou, ao menos, da que acabou ontem, era a de permitir que governantes trocassem experiências pessoais ou de seus países, sem emitir prescrições para seus pares.
Nos corredores, a diplomacia brasileira fez questão de deixar claro que só embarcou na dureza com que a Argentina, em nome do Mercosul, defendeu uma declaração mitigada sobre a Alca, porque seu parceiro era o anfitrião da festa. Foi a reboque, o que não impediu Lula de oferecer ao primeiro-ministro canadense Paul Martin, no encontro bilateral que tiveram, o formato 4+1 (os quatro são os países do Mercosul) para um acordo de livre comércio. Martin topou, em princípio. Ficaram de conversar mais. São assim as cúpulas: acima de tudo um grande parlatório.


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