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COMENTÁRIO/CÚPULA DAS AMÉRICAS
Chávez ironiza Bush, que elogia Lula, que aplaude Kirchner
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MAR DEL PLATA
A 4ª Cúpula das Américas terminou mais ou menos como um
dos mais célebres poemas de Carlos Drummond de Andrade: Hugo Chávez ironizou os Estados
Unidos de George Walker Bush,
que elogiou Luiz Inácio Lula da
Silva, que aplaudiu o discurso do
argentino Néstor Kirchner, que
atacara duramente os Estados
Unidos na véspera.
Mesmo assim, como diz um antigo ditado argentino, "la sangre
no llegó al rio", no caso o rio da
Prata, em cujas margens reuniram-se de sexta-feira até ontem
representantes dos 34 países americanos, excluída apenas Cuba, de
todo modo presente nas lembranças de Chávez. O venezuelano
chamou, no comício da "outra
cúpula", o menino cubano Lazarito ao centro do palco, apresentou-o ao púbico e o precoce mas
bem treinado garoto gritou ao microfone "pátria o muerte" (faltou
o "venceremos"), como se fosse
um "revival" dos anos 60.
De volta a 2005 e na cúpula oficial, no entanto, Chávez não usou
sua retórica incendiária. Preferiu
a fina ironia. Lembrou que os dois
países desenvolvidos das Américas (sem dizer que são EUA e Canadá) se tornaram desenvolvidos
exatamente porque não usaram a
receita dita neoliberal que agora
gostam de vender aos seus parceiros americanos.
"O pior é que é verdade", ouviu-se baixinho, na bancada ocupada
pelos delegados brasileiros.
Mas também é verdade que
Chávez não usa linguagem de estádio de futebol na presença de
Bush porque, retórica à parte, o
fato é que o maior comprador de
produtos venezuelanos são os Estados Unidos (por conta do petróleo). E, por isso mesmo, Chávez pode despreocupadamente
pretender sepultar a Alca: não
precisa dela para abrir o mercado
norte-americano, que já está
aberto para o petróleo da Venezuela -e assim vai continuar
com ou sem Alca.
George Walker Bush também
não repetiu as críticas e ameaças,
às vezes sinistras, que seus assessores mais "neocons" (neo-conservadores) usam contra Chávez.
A diplomacia brasileira gosta de
acreditar que tem parte do mérito
pela moderação: uma e outra vez,
os brasileiros do governo Lula dizem aos norte-americanos que
Chávez veio para ficar e é melhor
tentar conviver com ele do que
desestabilizá-lo, o que poderia levar a um incêndio regional.
Se Bush ouviu tais recomendações, ninguém diz. Mas ele, no seu
discurso aos pares americanos,
fez dois elogios a Luiz Inácio Lula
da Silva. Primeiro, previsível e de
cortesia, pelos programas sociais,
em especial o "Fome Zero". Depois, menos previsível, ao fato de
que a experiência sindical forjou
Lula como "duro negociador".
Ou, posto de outra forma, Bush,
ele também duro negociador, não
se mostrou especialmente incomodado pelo fato de o Brasil de
Lula ter sido ator coadjuvante na
resistência oferecida pelo Mercosul à disposição norte-americana
(e canadense e mexicana e de
mais 25 países) para acelerar as
negociações em torno da Alca.
Aliás, Bush, em seu discurso defendeu, como é óbvio, o livre comércio, mantra que é uma de suas
marcas registradas, mas, ao menos pela leitura feita pela delegação brasileira, não deu ao discurso o caráter de receituário obrigatório, como costuma ser comum
na oratória das personalidades do
governo norte-americano, seja
qual for o presidente.
É justamente esse Bush tipo
"paz e amor" que o governo brasileiro espera hoje em Brasília. Espera mais: uma boa notícia em
torno da investigação que os Estados Unidos fazem compulsoriamente sobre o respeito por parte
do Brasil dos direitos de propriedade intelectual (ou, visto pelo lado negativo, se o Brasil reprime
ou não a pirataria).
A ameaça que antecedia a visita,
embora não relacionada com ela,
era a de fazer o Brasil perder vantagens que hoje goza no mercado
norte-americano, conforme o
SGP (Sistema Geral de Preferências), por ser suposta ou realmente leniente com a pirataria. A boa
notícia, se confirmada, seria logicamente a eliminação da ameaça.
Mas nem a expectativa de que o
Bush seja "paz e amor" fez com
que Lula, no seu próprio discurso,
adotasse tática idêntica. Ao contrário, o presidente brasileiro preferiu elogiar rasgadamente o discurso de abertura da cúpula proferido pelo seu parceiro-rival-de
novo-parceiro Néstor Kirchner
na véspera. Kirchner não poupou
críticas aos Estados Unidos e aos
organismos financeiros internacionais cujas políticas são ditadas,
quase sempre, pelos EUA.
Não que Lula tivesse em mente
apunhalar Bush pelas costas,
usando as palavras de Kirchner.
Não. Quis só enfatizar que a grande vantagem das cúpulas ou, ao
menos, da que acabou ontem, era
a de permitir que governantes
trocassem experiências pessoais
ou de seus países, sem emitir
prescrições para seus pares.
Nos corredores, a diplomacia
brasileira fez questão de deixar
claro que só embarcou na dureza
com que a Argentina, em nome
do Mercosul, defendeu uma declaração mitigada sobre a Alca,
porque seu parceiro era o anfitrião da festa. Foi a reboque, o que
não impediu Lula de oferecer ao
primeiro-ministro canadense
Paul Martin, no encontro bilateral
que tiveram, o formato 4+1 (os
quatro são os países do Mercosul)
para um acordo de livre comércio. Martin topou, em princípio.
Ficaram de conversar mais. São
assim as cúpulas: acima de tudo
um grande parlatório.
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