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LANTERNA NA POPA
A nova aliança atlântica
ROBERTO CAMPOS
Na década dos 80 emergiram
várias teorias sobre o "declinismo" ou o "decadentismo" americano. A grande nação estaria
sofrendo de "sobreextensão imperial" - moléstia que explica o
perecimento de vários impérios
do passado. Essa "sobreextensão" pode resultar de aventuras
militares, do debilitamento financeiro pelo excesso de encargos ou do esgotamento do modelo político-ideológico. Esse último fator explicou a espetacular
implosão do império soviético
em 1989. Na mesma década, começou-se a falar que o século 21
deixaria de ser o século do
Atlântico para se tornar o século
do Pacífico. Sucediam-se no Japão proezas tecnológicas, o país
se tornara o maior credor do
mundo, começava a se manifestar o dinamismo chinês, e os tigres asiáticos se distanciavam
crescentemente dos demais
"emergentes". Na Europa receava-se o surgimento de uma nova
doença, a "euroesclerose".
Conquanto se confirmasse a
superioridade do capitalismo
sobre o socialismo, tornaram-se
comuns avaliações depreciativas do capitalismo americano,
de tipo individualista e bucaneiro, comparativamente ao capitalismo europeu, um pouco
mais dirigista e assistencialista,
e sobretudo ao capitalismo japonês, que parecia conciliar
proeza tecnológica, coesão social, baixo desemprego e crescimento sustentado. Estaria à vista na franja do horizonte o "século asiático".
Na atual década dos 90 a conjuntura global mudou dramaticamente. Os Estados Unidos deram a volta por cima, enquanto
a economia japonesa entrava
num longo período de estagnação, insensível a juros baixos e
estímulos fiscais, numa espécie
de "armadilha de liquidez". A
Europa iniciou sua dieta de
emagrecimento, pois que a preparação para a moeda única,
iniciada em 1992 com o Tratado
de Maastricht, impôs severos tetos ao déficit público. Os emergentes asiáticos continuaram
sua trajetória ascendente, reforçada pelo surto de crescimento
das regiões capitalistas da China continental, mas foram afinal colhidos pela crise em 1997.
Que está na raiz da retomada
do crescimento americano, que
tornou esse país a verdadeira locomotiva do fim do século? Em
primeiro lugar, a aceitação,
mais desinibida do que na Europa ou Japão, do capitalismo
competitivo, que resulta, como
dizia Schumpeter, numa constante "destruição criadora".
Com menores encargos assistenciais que os europeus, os americanos exploraram melhor as virtuosidades da redução de impostos para estímulo da oferta
privada (supply side economics). Em segundo lugar, a flexibilidade da mão-de-obra,
quer em termos de livre negociação salarial quer de mobilidade
física em busca de oportunidades de trabalho. Em terceiro lugar, o espírito de inovação, que
não se confina ao aspecto tecnológico, mas que abrange qualquer medida que contribua para incrementar o "valor adicionado". Enquanto na década dos
80 os japoneses superavam os
ocidentais em inovações no processo fabril, na atual década são
os americanos os pioneiros nas
inovações no setor de finanças,
serviços e tecnologias científicas. Obedecendo a impulsos de
mercado, antes que à "política
industrial" de burocratas iluminados, os americanos assumiram a liderança dos setores de
tecnologia mais dinâmica como
informática, telecomunicações e
engenharia genética.
Se a década dos 80 foi predominantemente asiática, a dos 90
hegemonicamente americana, é
provável que na próxima década assistamos a um renascimento europeu. Esse será facilitado
por dois motivos. Primeiro, a
criação da moeda única, que
formará um mercado comercial
e financeiro de US$ 6,5 trilhões,
pouco abaixo dos US$ 8 trilhões
do mercado americano. Ambos
os grupos exportam cerca de
11% do PIB e têm uma porcentagem do comércio mundial em
torno de 18%. Há na Bolsa americana 9.900 firmas listadas contra 9.000 nas Bolsas européias.
Em segundo lugar, porque a economia européia está corrigindo
sua defasagem tecnológica em
relação aos Estados Unidos, no
tocante à tecnologia de finanças, informática, engenharia genética e telecomunicações. Começam a surgir na Europa os
"venture capitalists", voltados
profissionalmente para o fomento das inovações.
Na década dos 80 os Estados
Unidos tinham uma séria desvantagem em relação à Europa:
era seu grave déficit gêmeo - o
fiscal e o cambial. Hoje o primeiro deles se transformou em superávit, mas o segundo, que atinge
a casa dos US$ 300 bilhões
anuais gera a apreensão de um
eventual colapso do dólar.
Em compensação, os Estados
Unidos mantêm duas vantagens: (1) mercado de trabalho
mais flexível, resultando em menor desemprego; (2) perfil demográfico mais favorável. Comparativamente à Europa, os
problemas fiscais ligados ao envelhecimento da população são
menores nos Estados Unidos,
onde o envelhecimento é menos
rápido, maior o influxo de imigrantes, menos generosa a seguridade pública e mais forte o sistema de capitalização privada.
A perspectiva de um século 21
sob hegemonia asiática é cada
vez mais remota, em virtude da
crescente integração atlântica
entre a Norte-América e a Europa. Essa integração não é propriamente comercial -pois permanecem intensos os atritos
mercantis- mas sim financeira
e tecnológica. Isso se traduz no
fenômeno das megafusões e incorporações. Na indústria automobilística, fundiram-se a
Daimler-Benz e a Chrysler. No
setor financeiro, fala-se na absorção no Banker's Trust pelo
Deutsche Bank. Nas telecomunicações, o grupo inglês Vodaphone adquiriu a Air Touch americana, tornando-se o maior operador mundial de celulares. São
indicadores dessa grande aliança transatlântica em formação o
movimento de desregulamentação, as alianças tecnológicas, a
integração de complexos financeiros, a uniformização de técnicas gerenciais e a grande onda
de fusões e incorporações.
Contrastando com essa integração da aliança Atlântica,
existe uma crescente marginalização dos países emergentes, seja na América Latina, seja na
Cortina de Ferro. O fluxo de capitais que para lá se dirigiam
em busca de maior rentabilidade praticamente secou. Os empréstimos de bancos comerciais
dos países credores aos países
emergentes caíram de US$ 121
bilhões em 1997 para US$ 10 bilhões no ano passado. Cada vez
mais o capital flui de ricos para
ricos do que desses para os pobres. E os fluxos destinados à
compra de ações e títulos de renda fixa se inverteram drasticamente, em resultado das sucessivas crises - a mexicana, a asiática, a russa e agora a brasileira.
Em todos esses casos, as desvalorizações monetárias criaram o
medo de perdas patrimoniais,
que supera o atrativo dos juros
altos.
E permanece a conhecida lei
de Krugman: "não há pequenas
desvalorizações cambiais ou
desvalorizações controladas,
nos países emergentes". Nos países desenvolvidos, as desvalorizações cedo se autolimitam,
porque despertam no exterior a
vontade de compra dos ativos
depreciados.
Os fluxos de capitais para os
países emergentes se tornaram
cada vez mais seletivos, confinando-se hoje a países considerados "apostas estratégicas", como China, Coréia, México ou
Polônia. A Rússia e a Indonésia
saíram do radar dos investidores. E o Brasil, que no ano passado atraiu US$ 24 bilhões de investimentos diretos, corre atualmente o risco de perder o caráter
de "aposta estratégica". Para
evitar esse desfecho, temos que
fazer com que a taxa cambial
reencontre rapidamente seu
ponto de equilíbrio, terminando-se o severo "overshooting"
sofrido pelo real. É necessário
controlar o repique inflacionário por intermédio de um ajuste
fiscal rigoroso e da manutenção
de uma economia desindexada.Mas o grande trunfo brasileiro para continuar a ser uma
"aposta estratégica" está nas privatizações. Longe de serem postergadas em virtude da crise, elas
devem ser aceleradas como elemento contributivo para a solução da crise.
Roberto Campos, 81, é economista e diplomata. Foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento
(governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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