São Paulo, domingo, 7 de fevereiro de 1999

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DOMINGUEIRA
De volta de Courchevel

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

Encontro meu amigo tucano numa alameda dos Jardins. Vem rua abaixo, flutuando como o câmbio, desviando de canteiros e pedintes, de volta das férias européias em Courchevel.
Está com o bico baixo, ar meditativo, com sua fresca Lacoste amarelinha e o simpático mocassim Guido nos pés. Olha fixamente um papel, que me parece um extrato de cartão de crédito.
Leva um susto com a saudação:
"E, então, meu amigo, de volta à vida real?"
Guarda rapidamente o extrato e responde sorridente: "Que remédio, que remédio..." E acrescenta com o canto da boca, antes que eu me aventure no assunto: "Isso aqui está muito ruim, não está não?"
"Muito, muito", concordo.
"O Fernando (meu amigo tucano refere-se sempre assim ao presidente) bobeou demais..."
"Quem bobeou fui eu", retruco. "Ele deixou o país pendurado com o pincel na mão".
Meu amigo tucano faz uma pausa, limpa os óculos escuros com o lenço, pensa um pouco e resolve arriscar um "overshooting" otimista:
"Tudo bem, mas vai ser muito melhor assim. Pode apostar aí: vamos chegar ao fim do ano com juros baixos, saldo comercial positivo e retomada do crescimento".
"Isso se chegarmos ao fim do ano", provoco. "O país está demitindo, as empresas estão sufocadas, a miséria cresce, a violência aumenta e a credibilidade do governo é nula..."
"Também não vamos exagerar. Vocês da imprensa estão sempre vendo o pior lado das coisas. Que mania! O Mr. Fischer, por exemplo, achou que o quadro é bem melhor do que vocês pintaram", responde irritado.
"Que Mr. Fish? O dono daquele restaurante?"
"Mr. Fischer, o do Fundo, ora bolas!"
"Ah é? Good for him. Vai ter mais espaço para impor ganhos fiscais, não é mesmo?", continuo provocando.
"Eu não vou discutir nesse nível", exalta-se meu amigo.
"Tudo bem, tudo bem. Agora, francamente, o que você achou da indicação do Fraga?", indago.
"Excelente, claro. Não dá para ficar brincando com o mercado. Ele vai ser um antídoto contra os especuladores".
"Que ótimo, vou avisar minha mãe", debocho.
"Olha, você está brincando com coisa séria, rapaz!", adverte ele, já vermelho de raiva.
"Quem estava brincando com coisa séria era o governo", respondo no mesmo tom.
Meu amigo tucano respira fundo e decide fechar as operações. "Tudo bem, estou com pressa" , despista.
"Algum problema com o cartão de crédito?", pergunto amistosamente.
"Não, imagina. Bem... Até já. Depois falamos com calma". Despede-se e parte rapidamente em seu flutuante caminho. Ainda posso vê-lo, adiante, preocupado, retirando seu extrato do bolso.
Não aceitam real em Courchevel.



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