São Paulo, domingo, 07 de abril de 2002

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ELIO GASPARI

Aos colegas, tudo. Aos fatos e aos alunos, o rigor da lei


No último domingo, publicou-se aqui uma crítica ao livro "O Brasil Atual e a Mundialização", da professora Zilda Iokoi, chefe do Departamento de História da Universidade de São Paulo. Obra paradidática, foi publicada em 1997 pelas Edições Loyola e reimpressa no ano passado. Teve uma tiragem de cerca de 3.000 exemplares e foi selecionada por uma comissão de professores da rede pública para a bibliografia básica de um concurso. Posteriormente, outra comissão colocou-a na lista de títulos oferecidos às escolas pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. A Viúva comprou 2.383 livros e mandou-os a mil escolas.
Deixando de lado qualquer leitura interpretativa, listaram-se na crítica 14 erros que envenenam o livro. Foram 14 porque esse número equivale a 10% das páginas do livro. A autora, bem como a editora e a Secretaria de Educação, resolveu tirá-lo de circulação.
Na quinta-feira, o professor de História Fábio Bezerra de Brito, da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP, publicou uma carta na Folha na qual disse o seguinte:
"Seu olhar [do signatário", ao deter-se em erros factuais, fechou-se à reflexão instigante e bem fundamentada desenvolvida por Zilda Iokoi no seu livro "O Brasil Atual e a Mundialização". E, como se isso não bastasse, o trabalho dos professores que têm reconhecido o mérito dessa publicação foi desqualificado. Eles leram, sim, o livro em questão. E o escolheram como uma ótima opção para o trabalho pedagógico na linha da história temática, que procura compreender o passado em suas múltiplas temporalidades para explicá-lo com o objetivo de construir nos alunos uma atitude crítica em relação ao presente. Essa concepção progressista do conhecimento histórico opõe-se ao ranço positivista da história das datas, dos nomes e da sucessão dos fatos, que saiu valorizada nas palavras pesadas e injustas do articulista".
O professor Bezerra de Brito abre uma nova e boa discussão. Dê-se por entendido que leu o livro e julga acertado que jovens estudantes do 2º grau tenham os conhecimentos avaliados com base no seu conteúdo.
A contraposição de uma "concepção progressista" a outra, com "ranço positivista", é falsa e maligna. Seu efeito sobre o ensino da História favorece a mediocridade, a preguiça e o preconceito. Concepção progressista não tem nada a ver com erro, e o interesse por datas certas não tem a ver com positivismo. O "18 Brumário de Luís Bonaparte" é, sem dúvida uma obra-prima da historiografia universal e não há como negar a Karl Marx uma "concepção progressista". Em 87 páginas ele menciona em torno de cem datas e 70 nomes. Todos certos. Pode ser que a data do golpe de Luís Bonaparte, em 1851 (2 de dezembro), não tenha a menor importância, mas o barbudo não disse que o futuro Napoleão 3º fechou a Assembléia francesa no dia 29 de outubro. Já na "ótima opção para o trabalho pedagógico" do professor lê-se que Getúlio Vargas foi deposto no dia 2 de dezembro, quando isso aconteceu no dia 29 de outubro.
O que está em questão é a qualidade do julgamento de um professor que recomenda um livro paradidático repleto de erros. Bezerra de Brito sustenta que, no caso, o professor pode considerar semelhante trabalho uma "ótima opção". Manda quem pode (ele), e obedece quem tem juízo (o aluno). A autora, sua editora e a Secretaria de Educação optaram pelo recolhimento do livro.
Para animar a discussão, já que o professor reclama que a crítica se deteve em erros factuais, pode-se listar trechos que levam à reflexão. Vão abaixo cinco citações, sem comentários. Quem quiser lê reflete e decide.
-Durante a ditadura, "o governo estimulou a construção de inúmeras rodovias por todo o país, de maneira a facilitar a difusão ideológica, o abastecimento das regiões e a defesa dos interesses dos empresários do setor e dos militares, beneficiários dos negócios firmados com as empresas".
-Glauber Rocha "criticava tanto a esquerda como os militares e talvez se mostrasse mais tolerante com os últimos".
-Depois da 2ª Guerra Mundial, "os Estados Unidos perceberam que o Japão ocupava uma posição estratégica no Oriente e, por isso, resolveram injetar dólares em sua recuperação. Dessa forma, facilitaram a inserção daquele país no bloco capitalista, que se formou em oposição aos antigos aliados russos. Estes, por sua vez, trataram de aumentar sua influência sobre outras áreas na Europa Oriental".
Nessa mesma época "houve [um" deslocamento populacional na Prússia Oriental e na Ucrânia. A Europa Ocidental realizou o mesmo processo de transferência de população, com a finalidade de ordenar o mundo para se submeter às novas áreas de influência que se criariam".
-"A perestroika não conseguiu conter a insubordinação popular."
Agora mais cinco erros, factuais.
-"A terra dos Franco é Sergipe. Augusto do Prado e Albano, seu filho, são hoje os políticos mais influentes do Estado."
-"Chacinas como a ocorrida na porta da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, na qual dezenas de meninos de rua foram friamente executados." (Os mortos foram oito.)
-Sobre a reação ao levante militar de 1964: "Houve duas tentativas de resistência: uma dos militares do Rio Grande do Sul e outra do Grupo dos Onze, militantes camponeses armados para a conquista da terra com o objetivo de consolidar um programa agrário que revolucionasse o país". (Os Grupos dos Onze, chefiados por Leonel Brizola, eram essencialmente urbanos. A mobilização rural dava-se com as Ligas Camponesas.)
-Jânio Quadros "proibiu o biquíni nas praias". Jânio proibiu a transmissão pela TV de concursos de misses com maiôs cavados.
-Finalmente, um caso de criatividade. A carta testamento de Getúlio Vargas é um lindo documento da história nacional. É também um texto fácil de ser consultado. No livro há a citação de um trecho em que Vargas denuncia os interesses nacionais e internacionais "que, como aves de rapina, sugam o sangue do povo, que não mais será escravo de ninguém".
Essa frase não existe como tal. É produto de um pastiche, no qual colaram-se, dentro das mesmas aspas, pedaços de dois belos trechos: "Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, [se" querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida" e "Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém".

O gogó da segurança

Como diz a propaganda do governo cassada pela Justiça Eleitoral, "8 anos construindo o futuro". A polícia do Rio começou a investigar a presença de 32 ex-pára-quedistas na tropa do tráfico de drogas. A cada ano dão baixa dessa força de elite do Exército cerca de mil galalaus severamente treinados. Se os suspeitos são apenas 32, é baixa a capacidade de recrutamento da bandidagem. É possível que sejam apenas 12. Trata-se de coisa inteiramente construída pela inércia do governo.
Faz mais de um ano que o tucanato recebeu uma sugestão banal: poderia incorporar às polícias civil e militar os jovens pára-quedistas que terminam seu serviço militar. Levando em conta a taxa de desemprego entre os jovens, é razoável supor que a cada ano 200 ex-soldados saiam da tropa direto para o desemprego ou o biscate. Bastaria abrir um voluntariado. Quem quisesse ser polícia teria o ingresso facilitado. Cada ex-pára-quedista é um jovem que passou por um duro processo de avaliação, habituou-se a seguir normas estritas e, acima de tudo, aprendeu a conviver com o perigo. A ficha não caiu.
Até aí, tudo bem, porque os governos não são obrigados a ouvir. Infelizmente, há altos tucanos pensando que fizeram coisa parecida. Uma medida provisória de FFHH deu aos governos estaduais a capacidade de contratar temporariamente os jovens que são dispensados do serviço militar por excesso de contingente. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Um nem sequer entrou num quartel, enquanto o outro passou um ano lá dentro, adestrando-se.

Curso Madame Natasha de piano e português
Madame Natasha tem horror a música. Ela colabora com a harmonia do idioma e concede bolsas aos sem-nexo. Sua última benfeitoria vai para a Equipe de Ação Educativa da Bienal de São Paulo. Ela informou o seguinte aos jovens que se candidataram ao serviço de monitor da mostra: "Nestes dias, sentindo-se como estrangeiros ansiosos por desvendar "A Metrópole", aguçamos nossos sentidos convocando nossos corpos para monitorar a aprendizagem que transformará a atual condição de aprendizes em futuros moradores responsáveis pela mediação da recepção artística dos passantes anônimos, os diferentes públicos que vão circular por tantas cidades. Como em todo início, há a sensação de vazio grávido, há uma vontade de saber, há o consumo de horas de leitura e apreciação de imagens para aprender a gestar um projeto de mediação que provoque o encontro estético entre a ação educativa da monitoria, o discurso expositivo e o público. (...) Seja bem-vindo o grupo candidato a futuros monitores!"
Natasha acredita que pretenderam dizer o seguinte:
"Boa tarde".

ENTREVISTA

Ovídio de Melo

(76 anos, embaixador aposentado)

-O senhor era o representante do Brasil em Luanda em 1975, no início da guerra civil angolana, e participou da formulação de uma política que antagonizou os Estados Unidos. Quase 30 anos depois, os americanos admitem que fizeram bobagem. Como o senhor vê as diferenças de hoje entre Brasília e Washington?
-Houve uma deterioração da nossa soberania. Seu pior momento foi a assinatura, pelo atual governo, do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. Ao lado disso, aumentou nossa dependência. Quando o Jango foi deposto, o Brasil devia US$ 3 bilhões. Ao final da ditadura, eram US$ 132 bilhões. Hoje são US$ 600 bilhões, mesmo depois de termos vendido boa parte do patrimônio nacional. Essa deterioração se agrava quando sabemos que em 2005 estará criada a Alca. O que é a Alca? Ninguém sabe. Não há um papel a partir do qual se possa dizer o que os americanos querem. Não há um foro de discussões apto. Não adianta pensarmos em ficar de fora, pois tudo indica que os americanos formarão um bloco que reunirá pelo menos 90% do PIB da região. No governo Clinton já era difícil prever a conduta americana. Hoje, estamos sujeitos aos desejos hegemônicos de George Bush, que é um presidente voluntarioso e trapalhão.
-Mas hegemônicos eles são.
-E eu lhe pergunto: que hegemonia? Nem eles sabem. Aspiram a uma posição de onipresença e onipotência que nem Roma -muito menos a Inglaterra- chegou a cobiçar. Estão se atribuindo funções divinas no campo militar, na política e na economia. Querem impor aos países asiáticos, sobretudo à China, noções que não fazem parte de suas culturas. Eles nunca souberam o que é democracia. Entraram no Afeganistão com uma postura vencedora, mas sairão desgastados, como saíram da Somália. No Oriente Médio, apóiam Israel, mas encurralaram-se, azedando suas relações com os árabes. Eles passam lições, como se fossem donos do conhecimento. A Argentina é um bom modelo das agitações que os americanos estão semeando. Durante mais de dez anos, o governo argentino teve uma "relação carnal" com Washington. Fez tudo o que eles pediram. Chegou a mandar tropas para a Guerra do Golfo. Terminou com o país a caminho de uma anarquia. Não há no conhecimento da ciência política um tipo de regime que pareça se adequar à sua crise. Os americanos estão olhando para a Argentina como se não tivessem nada a ver com o que lhe está acontecendo.
-E o Itamaraty nisso?
-A nossa diplomacia está encolhendo. De certa maneira, isso é uma tendência mundial. Nos países desnorteados diante da crise, a diplomacia vai para o brejo com mais facilidade. Primeiro ela perdeu as negociações financeiras. Nos anos 70, abriu-se uma janela com a propaganda comercial, mas o câmbio sobrevalorizado tornou os nossos esforços inúteis. Nossa política externa foi pulverizada e o que temos de mais visível é a diplomacia presidencial. O professor Fernando Henrique terminará seu governo tendo passado um ano inteiro no exterior. O Itamaraty vai se tornando um órgão necessário para pouco mais que funções de cerimonial. O grande perigo é acharmos que essa posição é confortável. Nossa chancelaria raramente se pronuncia de forma relevante a respeito de um problema internacional.


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