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ENTREVISTA DA 2ª/ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Não sou museu, estou vivo; posso rever minhas idéias
PLÍNIO FRAGA
ENVIADO ESPECIAL A CAMBRIDGE (EUA)
Novo titular da Secretaria de Ação de Longo Prazo afirma ter pensado no curto
prazo ao fazer críticas na campanha eleitoral ao presidente do qual será ministro
O TITULAR da nova Secretaria Especial para
Ações de Longo Prazo de Lula assume o
posto admitindo ter sido imediatista e
agido de acordo com interesses de curto
prazo. "Errei no calor do embate", desculpa-se o filósofo e professor de direito da Universidade Harvard
Roberto Mangabeira Unger, 60, ao justificar como, de
opositor ferrenho ao presidente, está prestes a ser seu
36º ministro. "Não sou um museu, estou vivo. Posso
rever minhas idéias", afirma.
Mangabeira deixa a universidade em que leciona há 38 anos
e recebe salário anual de US$
270 mil -cerca de R$ 44 mil
por mês- para assumir um cargo que lhe pagará pouco mais
de R$ 8.000 mensais.
Prega a ampliação de oportunidades econômicas e educacionais a uma "classe média
emergente, inovadora, que
constrói uma nova cultura de
auto-ajuda e que é a vanguarda
do povo" -sendo o horizonte
que a maioria pobre quer seguir, cujo "ideal não é proletário, mas pequeno burguês".
Acredita que o país tem uma
"força de trabalho flexível e engenhosa e que pode escapar do
destino de ser uma China menos populosa, com trabalho
mal-remunerado e oprimido"
para se tornar conhecido como
o "país da inovação".
Nos últimos anos, para aumentar sua freqüência de vindas ao Brasil e ampliar o contato com temas nacionais, ele afirma que aceitou projetos de
consultorias, como o que o envolveu com o empresário Daniel Dantas, a agência de investigação Kroll e um emaranhado de acusações, em que até ministros teriam sido espionados.
"Admiro o talento analítico
de Daniel Dantas. Jamais constatei de sua parte, no curso de
minha consultoria, qualquer
transgressão legal ou moral. Há
algum tempo não falo com ele."
"Vivo no paraíso [Harvard].
Mas é um paraíso perigoso. Nada me aborrece. Não sou vulnerável. No Brasil, é o oposto: em
30 segundos me quebram a
couraça. Quero viver", disse
Mangabeira na sala 226 do
Areeda Building da Universidade Harvard, em Cambridge
(Massachusetts), onde recebeu
a Folha por dois dias.
Em 15 de novembro de 2005,
sob o título "Pôr fim ao governo Lula", Mangabeira escreveu
na coluna que mantinha na Folha: "O governo Lula é o mais
corrupto de nossa história nacional. (..) Desde o primeiro dia
de seu mandato, o presidente
desrespeitou as instituições republicanas. Imiscuiu-se e deixou que seus mais próximos se
imiscuíssem em disputas e negócios privados".
"É a única parte conhecida da
minha obra", graceja hoje Mangabeira, com 17 livros publicados. Até meados de 2006, ele
manteve o dedo em riste contra
Lula, a quem chamou de "avesso ao estudo e ao trabalho".
Mas mudou. "O mesmo presidente que eu havia atacado
em termos tão veementes me
convida para participar dessa
obra de transformação. Eu posso dizer não? Essa é uma concepção moral em política que
eu não compartilho", justifica.
Mangabeira permanecerá, ao
menos por mais duas semanas,
em Harvard, corrigindo provas
e monografias, no encerramento do ano letivo da universidade. Só depois que se desvencilhar das obrigações acadêmicas
assume a Secretaria Especial de
Ações de Longo Prazo.
FOLHA - Depois de tudo o que escreveu, quem errou ou quem mudou: o sr. ou o presidente Lula?
ROBERTO MANGABEIRA UNGER - Errei. Os fatos demonstraram
que o presidente não teve envolvimento direto ou indireto
naqueles episódios e que insistiu, com a energia exigida pelo
cargo, na averiguação necessária. Se até hoje a nação não sabe
com exatidão o que aconteceu
e quem de fato tem culpa pelos
desvios que hajam ocorrido,
não é por conta dele.
Nossas instituições políticas
falharam duas vezes. Primeiro
em manter regras, principalmente de financiamento das
campanhas, que deixam os partidos vulneráveis às confusões
dos financiamentos e às enroscadas do dinheiro; segundo, em
deixar de chegar a uma conclusão segura a respeito do ocorrido. Fica a lição pessoal de que
não basta ser ardoroso, como
sou. O ardor precisa ser qualificado pela humildade, pela dúvida, pela abertura de espírito.
Ao convidar a mim, que combati com veemência o seu primeiro governo, o presidente
demonstrou magnanimidade,
que costuma ter duas raízes:
força interior e preocupação
com o futuro. O mesmo presidente que eu havia atacado em
termos tão veementes me convida para participar dessa obra
de transformação. Eu posso dizer não? Essa é uma concepção
moral em política que eu não
compartilho.
FOLHA - O sr. escreveu que o presidente é "avesso ao trabalho e ao estudo". Isso também mudou?
MANGABEIRA - Fui claramente
injusto com o presidente. O homem que encontrei em Brasília
está possuído por um sentimento de tarefa. Não precisa
ser livresco para isso.
FOLHA - Como registrou o colunista da Folha Elio Gaspari, em 22 de
abril, o sr. retirou da internet o artigo em que atacava Lula. Por quê?
MANGABEIRA - É documento de
combate. Desde a época em que
o publiquei, circula na internet
e ocupa lugar de relevo em muitos sítios. A indagação a que se
põe é se eu devo continuar a divulgá-lo quando não mais expressa a minha posição. A resposta é que não devo. Seria irresponsável, frívolo, imoral
manter o texto. Retirei-o do sítio, com outros textos de natureza e conteúdo semelhantes,
mas não agora, e sim durante a
campanha eleitoral. Não sou
arquivista de mim mesmo, sou
construtor de uma tarefa e de
um caminho. Não sou um museu, não estou morto.
FOLHA - O sr. já foi ulyssista, brizolista, cirista e agora lulista. Não falta
coerência?
MANGABEIRA - Mas nunca fui estatista nem marxista [risos].
Quero alternativa que assegure
a primazia aos interesses do
trabalho e da produção, que dê
braços e asas à energia frustrada do país, que transforme em
flexibilidade preparada o espontaneísmo inculto do nosso
povo. Meu erro foi característico do pensador em política.
Procurar o outro para fazer o
serviço e poder voltar aos seus
livros. O outro porém é outro. O
meu dever é atuar diretamente.
FOLHA - O que fará a Secretaria Especial de Ações de Longo Prazo?
MANGABEIRA - A tarefa de pensar o futuro se traduz no debate
de propostas concretas. Vou
dar exemplos de preocupações
e propostas. Falo como pensador e cidadão. Temos de dar
instrumentos à energia dispersa e frustrada do país.
Em economia, um país da
inovação, em educação, um ensino capacitador e, em política,
uma democracia mudancista
de alta energia que, sem transigir em nada de garantias constitucionais e sem enfraquecer a
democracia representativa, comece pouco a pouco com grande cuidado a enriquecê-la com
elementos de participação nos
processos decisórios. Há certas
propostas que são vistas como
importantes, mas utópicas, e
outras que são vistas como factíveis, mas por isso triviais.
FOLHA - Como traduzir isso em
ações práticas?
MANGABEIRA - Se nós olharmos
embaixo, para essa classe média emergente, temos uma nova forma associativa e de auto-ajuda no Brasil, que o país não
vê. Temos que revelar isso ao
país. Esse Brasil que já deu certo fornecerá diretrizes para a
proposta. Criar oportunidades
para a classe média emergente
e permitir que a maioria a siga é
uma revolução. O meio é reorganizar pouco a pouco as instituições econômicas.
FOLHA - Regulação da economia?
MANGABEIRA - Não basta regular a economia de mercado ou
compensar suas desigualdades
por transferências de dinheiro.
É preciso democratizar o mercado, o que significa reimaginá-lo e reorganizá-lo. Não se cumprirá essa tarefa sem construir
uma grande infra-estrutura sobretudo em transporte e em comunicação, que unifique não só
o Brasil como toda a América
do Sul, nem sem consolidar
uma base de energia que aproveita nossos recursos singulares de biomassa.
FOLHA - Quais as mudanças que o
sr. defende na área política?
MANGABEIRA - Diminuir a dependência das mudanças em
relação às crises. Conseguiremos isso por meio de uma democracia de alta energia, mudancista. Estímulo à participação popular nos processos decisórios. Rumo a uma democracia participativa que enriqueça
a democracia representativa
sem enfraquecer as suas garantias. Mecanismos para resolver
impasses entre os poderes e facilitar a prática freqüente das
reformas.
Nosso presidencialismo
atual, copiado dos americanos,
deixa o presidente forte para
favorecer ou punir, mas fraco
para transformar. No futuro, o
caminho pode ser tanto a revisão do presidencialismo como
a construção de bases para um
regime parlamentar autêntico.
Fortalecer o equipamento educativo e social de cada cidadão
por políticas universalizantes
que não dependem da ocupação de um emprego específico.
Permitir que governos locais
possam divergir das soluções
gerais implantadas no país e
oferecer contramodelos de outros caminhos para o país. São
exemplos para uma democracia de alta energia.
FOLHA - Aumentar a participação
direta significa estimular plebiscitos
e referendos?
MANGABEIRA - Não necessariamente. É uma idéia entre outras. Engajamento da população nos processos decisórios,
desde os níveis mais altos da
política. Há países que recorrem a plebiscitos programáticos, países que permitem eleições antecipadas quando há impasse entre os poderes. Mas
sobretudo participação da base
nas decisões que afetam o dia-a-dia do cidadão. Sem abandonar as garantias da democracia
representativa, começar pouco
a pouco a enriquecê-la com traços de democracia direta.
FOLHA - Não traria instabilidade?
MANGABEIRA - Tudo tem de ser
desenhado com grande cautela
constitucionalista. Nosso presidencialismo foi inspirado na
tradição dos EUA, que tem um
desenho constitucional deliberadamente dedicado a desacelerar a política.
É um erro confundir democracia mais participativa com
democracia plebiscitária. Os
plebiscitos isoladamente e uma
grande democratização da informação e da participação nos
processos decisórios sempre
trazem o risco do cesarismo.
Não proponho isoladamente
plebiscitos nacionais. O que
proporia é não aceitarmos o
contraste paralisante entre a
ortodoxia das formas políticas
atuais e o salto no abismo da
democracia plebiscitária.
FOLHA - O sr. critica a mistura entre
política e dinheiro privado. Foi envolvido no escândalo da Kroll, suposta espionagem de membros do
governo para Daniel Dantas.
MANGABEIRA - Há muitos anos
combino minhas atividades
acadêmicas com consultorias
profissionais. Não sendo empresário ou herdeiro, precisei
trabalhar como profissional,
inclusive para financiar o que
tanto tenho desejado, minha
presença mais constante no
país. Pela mesma razão, preferi
as consultorias que me trouxessem ao Brasil, ainda que timidamente remunerada, a preço mais baixo do que se costuma cobrar nos EUA, por meus
ex-alunos e ex-assistentes.
Mantive relações corretas e
cordiais com Daniel Dantas,
como mantenho em geral com
os clientes. Admiro-lhe o talento analítico. Jamais constatei
de sua parte, no curso de minha
consultoria, qualquer transgressão legal ou moral. Há algum tempo não falo com ele.
FOLHA - Soube que ministros foram grampeados a pedido dele?
MANGABEIRA - Nunca, nunca,
nunca. Por uma das atividades
profissionais que desempenhei
tive de considerar a possibilidade de uma ação contra uma determinada empresa e examinar
relatórios da Kroll. Costumeiramente aparece nos EUA em
litígios de grandes empresas.
Não constatei nenhuma transgressão no que examinei.
FOLHA - O sr. terá sob seu comando
o Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas). Seus pesquisadores temem aparelhamento político.
MANGABEIRA - O Ipea terá a
mais absoluta independência.
Cerceamento zero, aparelhamento e constrangimento zero.
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