São Paulo, segunda-feira, 07 de junho de 2004

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ENTREVISTA DA 2ª

Psiquiatra, Jerrold M. Post fundou na CIA o Centro de Análise de Personalidade e Comportamento Político e faz perfis psicológicos de líderes para o governo dos EUA

Saddam no divã

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

O ex-ditador iraquiano Saddam Hussein tem o "eu machucado" e sofre de "narcisismo maligno". O cubano Fidel Castro é um "carismático destrutivo". Kim Jong Il, da Coréia do Norte, nunca conseguiu superar a figura paterna. E o terrorista saudita Osama bin Laden tem traços messiânicos.
O diagnóstico não vem do senso comum, mas da boca de um expert no assunto. O psiquiatra Jerrold M. Post, 70, deve saber do que está falando. No começo dos anos 70, fundou o Centro de Análise de Personalidade e Comportamento Político da CIA, a agência norte-americana de espionagem.
Desde então, a pedido dos sucessivos governos norte-americanos, realiza perfis psicológicos de líderes mundiais, seja para encontros de cúpula, seja em situações de crise. No primeiro caso, por exemplo, perfilou os convidados de Jimmy Carter em Camp David em 1978, quando o democrata se encontrou com o então presidente egípcio, Anuar Sadat, e o premiê de Israel, Menahen Begin.
No segundo, traçou perfis de Anastasio Somoza e Nicolae Ceausescu -sim, ele é especializado em ditadores.
Considerado um dos pioneiros na área e autor de "Political Paranoia - The Psychopolitics of Hatred" (paranóia política - a psicopolítica do ódio, 1997) e o recente "Leaders and Their Followers in a Dangerous World" (líderes e seus seguidores em um mundo perigoso), nos últimos anos se dedicava mais ao programa de psicologia política da Universidade George Washington, do qual é diretor. Até que aconteceu 11 de Setembro de 2001.
Primeiro, retomou o do terrorista saudita Osama bin Laden, para o qual vinha colhendo material já havia alguns anos, desde o primeiro atentado ao mesmo World Trade Center, em 1993. Nos meses seguintes, teve de atualizar o de Saddam Hussein, feito no início dos anos 90.
E não parou mais desde então. Entre uma palestra para agentes de inteligência e uma sessão do julgamento dos acusados de atacar as embaixadas norte-americanas na Tanzânia e no Quênia, do qual é testemunha técnica, Jerrold M. Post falou à Folha:

Folha - Em seu livro mais recente, "Leaders and Their Followers in a Dangerous World", o sr. diz que, de todos os líderes que perfilou, Saddam é o mais traumático. Por quê?
Jerrold M. Post -
É o caso clássico de uma pessoa com o "eu machucado", que poderia ter sido um adulto inseguro e ineficaz, mas que em vez disso tomou outro caminho. O "eu machucado" vem de sua infância, que é diferente de todos os líderes que eu já perfilei.
Aos quatro meses da gravidez de Saddam, sua mãe perdeu o marido; poucos meses depois, o filho mais velho morreu na mesa de operações, vítima de câncer. Ela então tentou fazer um aborto, malsucedido, e tentou se matar. Quando Saddam nasceu, tentou matá-lo. E isso é só o começo.
Para evitar que algo mais grave acontecesse, um tio materno, Khairalla Msallat, o resgatou pela primeira vez. Depois de alguns anos, ele voltaria a viver com a mãe, que tinha acabado de casar. Mas seu novo padrasto era psicológica e fisicamente violento.
Aos oito anos, seu tio o resgatou de novo e durante toda a adolescência o encheria com sonhos de glória, dizendo que um dia ele teria um papel heróico na história do Iraque e no mundo árabe, seguiria os caminhos deixados por Nabucodonosor e Saladino, figuras históricas que tomaram Jerusalém de volta aos muçulmanos.
O líder das massas demorou a surgir. Se você pensar bem, demorou até 1990, quando ele invadiu o Kuait e conseguiu fazer disparar o preço do petróleo com sua ação e se fazer notar pelos outros líderes mundiais. É aí que ele toma o caminho do que chamamos "narcisismo maligno". É quando começa o culto à personalidade, com as estátuas, os incontáveis palácios, a própria efígie estampada nas cédulas do país.

Folha - O que a captura modifica seu perfil?
Post -
Sua vida constrói o que eu chamo de uma alegoria arquitetônica. Ele nasceu numa aldeia lamacenta, não só economicamente, mas psicologicamente, então supercompensa esse passado construindo palácios magníficos, com mármore, ouro. Mas, sob essa riqueza, o que vemos?
Bunkers, abrigos secretos subterrâneos. Isso revela mais sobre seus traços psicológicos do que centenas de tratados. E, ironicamente, no final, quando é capturado, ele está de volta à lama inicial, num buraco cavado na terra.

Folha - O sr. perfilou vários líderes ao longo das últimas décadas. Qual mais o impressionou?
Post -
Bem, um deles é obrigatoriamente Kim Jong Il, da Coréia do Norte. Um personagem fascinante. Acho particularmente interessante que haja tão poucos líderes no mundo hoje em dia que sucederam seus pais. Temos o rei Abdullah, da Jordânia...

Folha - George W. Bush...
Post -
Claro, ele também. E então, o mais importante, Kim Jong Il, que sucedeu seu pai, ninguém menos que o fundador da Coréia do Norte contemporânea. É sempre difícil para um filho superar uma figura paterna importante e poderosa. Quando seu pai é venerado como deus, é impossível.
A ironia aqui é que a pessoa que criou o culto à personalidade do pai foi o próprio filho, quando diretor do escritório de Agitação e Propaganda. Também foi Il que propagou o mito de que ele era o continuador da obra, ao se autodenominar o "Caro Líder" dos norte-coreanos (o pai era chamado de o "Grande Líder").
Em contraste com o de seu pai, o plano principal de poder de Il parece ser manter seu extravagante estilo de vida em Pyongyang. Na década 1989 até 1999, de acordo com a empresa Henessy, que produz o famoso conhaque, Il gastou anualmente entre US$ 650 mil e US$ 800 mil com aquela bebida. Isso enquanto o salário anual médio na Coréia do Norte é entre US$ 900 e US$ 1 mil.
Ele tem algo como 10 mil a 20 mil filmes de longa-metragem, a maioria ocidentais, em sua coleção particular. E se mira no exemplo de líderes de ficção para exercer sua Presidência.

Folha - Ainda nesse assunto, o sr. já fez um perfil de George W. Bush?
Post -
Não faço perfis de líderes norte-americanos.

Por que não?
Post -
Uma das exigências éticas para ser psiquiatra nos EUA é não dar opiniões profissionais nem fazer diagnósticos sobre pessoas em cargos públicos. Seria antiético. Um psicólogo pode fazer isso, um cientista político pode fazer isso, mas a mim não é permitido.

Folha - Quais seus principais achados sobre Osama bin Laden?
Post -
Ele está na mesma linha de outros líderes carismáticos destrutivos, mas é diferente. Primeiro, porque foi bem-sucedido em todas as suas ações, o que confirma o caráter messiânico que ele se atribui e que seus seguidores lhe atribuem. Segundo, porque não foi pego pelas autoridades. Terceiro, porque tem um sucessor. Bin Laden é como se fosse o presidente do conselho da Islam Radical Inc., empresa que ele aumenta com aquisições e incorporações.
Se ele morre, será um problema, mas terá alguém para substituí-lo. Eles têm quatro diferentes chefes de operações. Desde o Afeganistão, eles se descentralizaram, fizeram uma organização bastante flexível. O verdadeiro problema é a atração que esse islamismo radical tem sobre os mais jovens.

Folha - É disso, aliás, que trata seu próximo livro, não?
Post -
Sim. Entrevistei 35 terroristas presos, todos com atuação prévia no Oriente Médio. Cheguei a duas conclusões. A primeira é que há vários tipos de terrorismo e diferenças entre terroristas, mesmo os que lutam aparentemente pela mesma causa. A segunda é que eles são bastante normais, psicologicamente falando.

Folha - Como assim?
Post -
Não são psicopatas sedentos do sangue de inocentes. Explico. O terrorismo é um fenômeno complicado. Quando George W. Bush diz que esta é a primeira guerra do século 21, ignora que, na verdade, nossa era do terrorismo surgiu no começo dos anos 70, com o atentado nas Olimpíadas de 1972, que teve uma incrível audiência televisiva. Foi ali que o terrorismo percebeu o poder daquela nova mídia eletrônica.
Nessa época, havia o terrorismo social-revolucionário, presente na Europa, na Itália, com a Brigada Vermelha, na Alemanha, com a Facção do Exército Vermelho, e na América Latina, com as Farcs da Colômbia, o Sendero Luminoso. Havia ainda o terrorismo separatista, caso do IRA na Irlanda do Norte, o ETA na Espanha, a Jihad Islâmica. Os primeiros se revoltavam contra a geração anterior, leal ao regime. Os segundos continuam a missão de seus pais, e veja que são os que sobreviveram mais fortes até os nossos dias.

Folha - Quem são eles?
Post -
Dentre esses, encontrei dois tipos. O primeiro é o aspirante a homem-bomba do conflito israelo-palestino, por exemplo. São jovens entre 17 e 22 anos, geralmente homens, sem formação, sem emprego, solteiros, com uma existência vazia. Seus recrutadores dizem que se eles querem fazer algo significativo por suas vidas devem se alistar entre os mártires, pois seus pais ganharão dinheiro e prestígio. Uma vez cooptados, nunca são deixados sozinhos, para não desistirem na última hora.
O segundo são os do tipo dos seqüestradores de 11 de Setembro. São mais velhos, entre 28 e 33 anos, com nível superior. Todos vêm de classe média e já viveram no Ocidente. São adultos formados, não jovens desiludidos. Não querem a compensação financeira, mas propagar sua mensagem, defender sua causa, pela qual estão dispostos a entregar sua vida.

Folha - O sr. já perfilou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez?
Post -
Tenho muito interesse nele, mas ainda não. Estou recolhendo material, particularmente sobre sua liderança atípica, como ele se jogou contra os EUA, rapidamente se identificando com Fidel Castro, sendo o primeiro líder ocidental a visitar Saddam Hussein durante o embargo...

Folha - E Luiz Inácio Lula da Silva?
Post -
Ainda não, apesar de achá-lo fascinante.


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