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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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ELIO GASPARI

Truculento e delirante, o BNDES está se matando

A atual gestão do BNDES poderá levá-lo ao suicídio. É uma pena, porque seus bons propósitos estão aprisionados por condutas truculentas. Ela será frita por uma ekipekonômica ruinosa, porém suave. O reinado de Carlos Lessa e o xogunato de Darc Costa serão fritos na controvérsia da crise do setor aéreo.
Começando pela truculência política. O economista Maurício Dias David, dos quadros do banco, deu uma entrevista criticando a mediocridade do Orçamento preparado pelo ministro do Planejamento, Guido Mantega. Na sua narrativa, sucedeu-lhe o seguinte: "Fui convocado ao gabinete do diretor de administração do BNDES, Márcio Henrique Monteiro de Castro, que me informou que as minhas críticas "haviam irritado profundamente" Brasília, que o BNDES recebera um chamado de lá e que o banco se via obrigado a abrir uma comissão de inquérito para me punir. "Vou designá-la na próxima semana.'"
Nos dias seguintes, a associação dos funcionários gritou. Parece não ter adiantado muita coisa. O ministro Ciro Gomes (de quem David foi colaborador) levou o caso a Lula. O presidente desautorizou o patrulhamento. Na tarde de quinta-feira, por meio do porta-voz do BNDES, o economista Márcio Henrique Monteiro de Castro informou que nunca falou em comissão de inquérito a Dias David. Sua providência foi solicitar à comissão de ética do banco uma resposta genérica para casos em que os funcionários usam o nome da instituição nas entrevistas que concedem. Tudo bem, o que não se entende é por que ele deveria chamar Dias David para informá-lo disso. De qualquer forma, eis aí um conflito para o presidente do BNDES administrar. É caso para comissão de inquérito.
A truculência econômica pode sair caro para a Viúva e para a patuléia passageira da aviação comercial brasileira. Aí juntaram-se dois tipos de craques, os gênios da Aeronáutica e o vice-presidente do BNDES, Darc Costa, investido das funções de escultor de mercado.
No dia 31 de julho, o brigadeiro Luiz Carlos da Silva Bueno assinou uma portaria informando que "a capacidade de auto-regulação do mercado, mediante a livre atuação das forças que nele interagem, deve ser buscada como meta de longo prazo". Tradução: fica suspensa a atuação do mercado. Tinha mais: "Quando da analise para a criação de novas empresas", deve-se levar em conta "a situação econômica das empresas existentes, principalmente quanto a compromissos assumidos".
Como o mercado foi suspenso, a criação de novas empresas depende do endividamento das velhas, quase todas falidas.
Suspenso o mercado, dada precedência ao endividado sobre o empreendedor, Darc Costa entrou em campo, sugerindo uma nova estrutura para os céus. Coisa simples. Uma empresa (a ser escolhida pelo governo) fica com os vôos internacionais. Ela e mais duas ficam com as linhas domésticas nacionais e regionais. Competição, só no que sobrar. As afortunadas, como o construtor do aviário de Lula no Alvorada, serão escolhidas numa licitação.
Estranho governo este. A maior empresa aérea do país está quebrada. Deve R$ 2,2 bilhões e tem um passivo oneroso potencial (pode me chamar de POP) de R$ 5,5 bilhões. Enquanto isso, o BNDES (de quem se quer tomar R$ 1,2 bilhão) quer redesenhar o mercado de transporte aéreo dizendo quem voa para onde e, sobretudo, quanto a patuléia deve pagar para sustentar esse labirinto voador. Darc Costa crê no que propõe. Ele diz o seguinte:
"Fizemos uma proposta de reestruturação do setor porque não acreditamos no discurso da concorrência como mola do sistema capitalista. Preferimos a cooperação."
Darc acredita sinceramente nisso. Pode ser que esteja certo, mas a concorrência não é um discurso. Fazem-se mais discursos no BNDES num dia do que em um mês no comércio do Rio e de São Paulo, onde a choldra rola na lama para vender mercadorias, pagar impostos e comer o que sobra.
Darc Costa informou também o seguinte: "Eu não sei por que um vôo de Brasília para o Rio custa R$ 680 pela Varig e R$ 300 pela Gol. Algo está errado".
O que está errado é o BNDES entrar na operação de sobrevida de uma empresa canibalizada por seus aerocratas para que ela continue cobrando R$ 680 por uma mercadoria que outra vende a R$ 300. (Na semana passada, a Varig e a TAM aumentaram as passagens da ponte Rio-São Paulo em 9%.)
O que há de triste na truculência denunciada por Dias David e na arrogância do projeto de redesenho do céu é que, se há hoje um foco de neurônios capaz de se opor à ekipekonômica que arruina o país, ele passa pelo BNDES.
Fica a patuléia com uma pobre escolha. De um lado, há um surto de megalomania estatal que adia o mercado, redesenha o céu, tunga o contribuinte e morde o consumidor. Do outro, a estampa cosmopolita da ekipekonômica que desde 1995 produz dívida, desemprego e decadência. A ekipekonômica é menos ruim.

O Planalto tem dois papéis: o extrafino e o interfolhado

É com imenso pesar que aqui se transcrevem os termos do pregão 030/2003, convocado pelo Palácio do Planalto:
"Objeto:
Aquisição de papéis diversos de higienização pessoal visando suprir os estoques da Coordenação Geral de Patrimônio, Engenharia e Transporte da Presidência da República (almoxarifado) por um período estimado de quatro meses, acrescida da margem de segurança de três meses para manutenção do estoque mínimo.
Das especificações e quantidades:
1) Papel higiênico extrafino, folha dupla, neutro. Medindo dez centímetros por 30 metros, cor branca, alta qualidade, 100% puro celulose, picotado e liso (2.560 rolos).
2) Papel higiênico interfolhado, folha dupla, medindo 11 centímetros por 21 metros, 100% celulose, matéria-prima virgem, cor branca, macio, resistente, hidrossolúvel, folhas intercaladas, compatível com porta-papel higiênico marca Ideal."
São dois, portanto, os tipos de papel higiênico usados no Planalto. Admitindo-se que sirvam para a mesma coisa e sabendo-se que, nesse uso, só há um lado (o de fora), bem que o chefe da Casa Civil, comissário José Dirceu, poderia dizer como funciona o processo de seleção petista para decidir quem rola no "extrafino" e quem milita no "interfolhado".


Tinha um tigre dentro da lebre

Na tarde de 27 de agosto, o Senado votou a principal peça infraconstitucional enviada por Lula ao Congresso. Foi a medida provisória número 122. Aprovada pela Câmara no início do mês, ela passou pelo Senado sem oposição. Os senadores foram para casa certos de que tinham ajudado na criação da rede de microcrédito para a população de baixa renda. Mal sabiam que tinham aprovado a criação de um saco dentro do qual o governo poderá jogar o que bem entender, emprestando dinheiro aos bancos privados para que eles financiem empreendimentos subsidiados. Chama-se Programa de Incentivo à Implementação de Projetos de Interesse Social, vulgo Pips.
Numa MP de dez artigos, o Pips ocupava a segunda metade do texto. Apesar disso e do fato de cada parlamentar ter mais de dez assessores, não há notícia de oposicionista que tenha reclamado do tigre que havia na lebre.
Não se pode dizer que o governo tenha trapaceado. Há referência ao Pips no pequeno resumo que acompanhou a MP. O relator do projeto na Câmara referiu-se a ele quando fez seu parecer. Aconteceu o elementar: deputados e senadores da oposição deram carta branca ao governo para tocar um programa de investimentos públicos porque não leram o que votaram.
Do jeito que ficou a MP, o Pips usurpará poderes e prerrogativas do Congresso e da sociedade. As obras públicas, que são minuciosamente arroladas no Orçamento da União, poderão ser jogadas no gavetão do Pips. A choldra verá quanto paga, mas não saberá para onde vai seu dinheiro.
Além disso, o Pips cria um novo mecanismo de financiamento de obras públicas. Coisa assim: a Viúva empresta ao banco privado para que ele financie a construção e a manutenção de uma estrada. Além disso, subsidiará o custo financeiro do investimento. Dois e dois são quatro, e a senhora garantirá também a renda da empresa que cobrará o pedágio. Tudo isso à custa da patuléia, que pagará impostos para financiar obras públicas que, uma vez concluídas, serão propriedade privada e haverão de lhe cobrar pelos serviços que oferecem.

Entrevista

Cristovam Buarque
(59 anos, ministro da Educação.)

- O sistema de classificação das faculdades a partir dos resultados do Provão vai acabar?
- O MEC recebeu um projeto, encomendado a uma comissão de especialistas. Ele será discutido com professores, com alunos e com quem quiser entrar no debate. Pessoalmente, sou favorável à existência de uma classificação das faculdades, feita pelo MEC. Não seria um ranking semelhante ao dos lutadores de boxe. Seria uma coisa mais complexa, com diversas classificações. Devemos avaliar os professores, as instalações e até as relações da faculdade com a comunidade. Há diferenças que devem ser levadas em conta. Uma faculdade instalada em Maragogipe, a terra do meu avô, em Alagoas, pode não estar fazendo pesquisas. Ela não deve ser avaliada da mesma forma como se avalia outra, que também não faz pesquisa, mas está num centro urbano com mais de 5 milhões de habitantes. Em cidade pequena, uma faculdade muda a qualidade da vida, muda até a conversa do boteco.
A avaliação dos alunos continuará a ser feita. Hoje a idéia é fazer dois exames por curso (um na metade e outro no final) para alunos escolhidos aleatoriamente, numa amostra. Não podemos dar estrelinhas para faculdades como se elas fossem restaurantes, mas podemos classificar os diversos aspectos que avaliamos. O importante, nesse processo todo, é fazer o trabalho de avaliação, divulgá-lo e agir sobre os resultados. Tanto para ressaltar o que vai bem, como para tentar consertar o que vai mal e, nos casos perdidos, fechar o que não tem jeito. Avaliar por avaliar não serve para nada.

- O vestibular pode acabar?
- Se dependesse de mim, já tinha acabado. Quando fui reitor da Universidade de Brasília, instituí um sistema de provas regulares durante o curso médio. Essas notas permitem o acesso do estudante à faculdade. Hoje esse sistema funciona em pelo menos sete universidades. Eu gostaria muito que, em vez de sete, fossem 77. Gostaria também que as comunidades pressionassem as escolas pela sua adoção. As universidades são autônomas. Se uma delas não quer esse sistema, o ministro da Educação não pode fazer nada.

- O Enem acaba?
- De jeito nenhum. Nossa idéia é mudá-lo. Hoje temos uma prova ao final do curso. É como um exame para saber se o fumante tem um tumor no pulmão. Se tem, pouco se pode fazer. A idéia é fazer uma prova a cada ano. Assim, o aluno pode avaliar melhor o seu desempenho e a qualidade do ensino que lhe dão. Ele recebe um sinal no primeiro ano, outro no segundo e o último no terceiro. Se as universidades quiserem, essas notas podem ser um fator para determinar o acesso do estudante. Não pretendemos servir prato feito. Vamos discutir tudo com professores, alunos e quem quiser discutir. Mais: se até o fim do ano não tivermos chegado a uma conclusão, não terei o menor constrangimento: em 2004 continuará tudo igual.



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