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ENTREVISTA DA 2ª
SANDRA JOVCHELOVITCH
Há simetria entre o comportamento da população e o dos políticos no Brasil
Psicóloga social afirma que ideia de "sangue corrupto" está arraigada no imaginário social do povo brasileiro
A corrupção na política é simétrica ao comportamento do brasileiro no seu cotidiano. O remédio
não se restringe às reformas institucionais, há
anos prometidas, e inclui uma mudança radical
no imaginário social sobre a corrupção e o espaço público. É
isso o que aponta a psicóloga social Sandra Jovchelovitch, 49,
professora da LSE (London School of Economics), no Reino
Unido, desde 1995, e autora de um estudo sobre as representações sociais e a esfera pública no Brasil.
Daniel Soares - 7.abr.08/RBS
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Sandra Jovchelovitch, que pesquisa esfera pública e representação social no Brasil |
FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL
Após o conturbado período
que culminou no impeachment
de Fernando Collor de Mello,
Jovchelovitch entrevistou parlamentares sobre o problema
da corrupção no país. A maioria
buscou causas fora de seu gabinete: culpou o povo, apontou
para o "outro". Anos depois,
muitos deles eram os protagonistas de novos escândalos de
corrupção no país.
O resultado de sua pesquisa,
publicado em "Representações
Sociais e a Esfera Pública" (ed.
Vozes), ela costuma dizer que
parece nunca envelhecer. "Cada escândalo é a erupção de algo que está latente. Só irrompe
porque é prática constante",
avalia. "Invariavelmente, a cada dois ou três anos surge um
novo caso de grande repercussão." E a história se repete.
Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida, por telefone, à Folha.
FOLHA - Como explicar a recorrência de episódios de corrupção no
Brasil, como o recente escândalo envolvendo o governador do Distrito
Federal, José Roberto Arruda?
SANDRA JOVCHELOVITCH - A corrupção no Brasil é um problema sistêmico. Ela se alicerça
em avatares muito profundos
da nossa cultura, o que explica a
recorrência dos escândalos e a
nossa incapacidade histórica
em lidar institucionalmente
com eles. Isso está vinculado a
uma autointerpretação do brasileiro de que nós somos um
povo corrupto, de que a corrupção está na constituição do nosso corpo político e social.
O marechal Floriano Peixoto
expressou essa ideia muito
bem quando convocou o Exército a invadir Canudos. Ele disse: "Como um liberal que sou,
eu não posso desejar para o
meu país o governo da espada.
Mas esse é um governo que sabe como purificar o sangue do
corpo social, que, como o nosso
próprio, é corrupto!". Essa
ideia do sangue corrupto, da
natureza corrupta -que a antropologia chama de "mal de
origem" e que a psicologia social investiga como representação no cotidiano- está arraigada no imaginário brasileiro.
FOLHA - Então casos como a fraude
no concurso do Instituto de Criminalística ou o esquema de corrupção
de que é acusada a construtora Camargo Corrêa são todos produtos de
um só "mal de origem"?
JOVCHELOVITCH - É o mesmo
sentido de apropriação de um
espaço ou de uma coisa comum
para avançar interesses particulares. A gente encontra esse
comportamento em praticamente todos os setores da vida
nacional. Sei que isso não é
muito politicamente correto de
dizer, mas existe uma simetria
no comportamento que nós encontramos no cotidiano da população com o comportamento
que encontramos na política.
Essa simetria se fundamenta
na interpretação do espaço público como um espaço de ninguém, ou simplesmente do
"outro" [conceito desenvolvido
pelo crítico literário Edward
Said no livro "Orientalismo"]. A
própria política, como arena
pública, se torna um espaço para o exercício do interesse privado. E, como a esfera pública é
desvalorizada, o ato de corromper se torna muito mais fácil.
FOLHA - Arruda já havia se envolvido, em 2001, em outro escândalo: o
da violação do painel eletrônico do
Senado. Como explicar o retorno de
figuras políticas à vida pública mesmo após escândalos?
JOVCHELOVITCH - Explica-se por
uma mistura de impunidade e
identificação, uma certa conivência com a corrupção. A punição no Brasil é limítrofe porque ela permite o retorno, como ocorreu com o Collor.
FOLHA - Por que os acusados do esquema de corrupção do DF dão justificativas como "o dinheiro era para
comprar panetones para os pobres"? A fala pública faliu?
JOVCHELOVITCH - Existe um divórcio entre a palavra e a ação.
O discurso se autonomiza em
relação aos atos. A cultura latina favorece essa autonomização. A palavra e o discurso pesam mais do que o ato. A palavra aceita tudo. A ação não. E é
no ato que a pessoa se revela.
FOLHA - Como purificar esse "sangue corrupto"?
JOVCHELOVITCH - Existe um consenso de que a corrupção, assim como qualquer ato criminoso, é sempre uma possibilidade. Não é possível erradicar a
corrupção porque ela é um erro
humano. O que podemos fazer
é construir procedimentos na
esfera pública desenhados para
lidar com situações de risco. Só
que essa tarefa se torna mais difícil nas esferas públicas marcadas por uma cultura em que o
privado tem preponderância.
Para resolver o problema no
país, vamos ter que mexer no
imaginário da sociedade sobre
o espaço público, mudar a nossa relação com esse espaço.
FOLHA - Qual a origem da inversão
na ideia de espaço público no Brasil?
JOVCHELOVITCH - Ela deriva de
fatores psicossociais e de fatores políticos que funcionam como um círculo vicioso: um reforça o outro. No campo político, nossa tradição sempre separou de forma muito aguda o espaço das decisões e o da participação do cidadão.
O Estado brasileiro é historicamente autoritário, tanto pelo
lado do populismo, quanto pelo
do autoritarismo militar. São
dificuldades institucionais
misturadas aos tais fatores psicossociais: um passado colonial
que viu na confluência de diferentes culturas uma ponte potencial para a corrupção.
No Brasil, sempre houve um
fascínio e uma repulsa simultâneos em relação a essa mistura
de raças. Isso porque a nossa
elite sempre teve um ideal de
embranquecimento, que projetou sobre o povo brasileiro a
ideia de mistura como sujeira e
corrupção. O espaço público no
Brasil, por consequência, é um
espaço misturado, corrupto e
sujo -um espaço do "outro".
Essa separação radical entre a
elite e o "outro" miscigenado
transforma o espaço do "outro"
em espaço de ninguém, lugar
que não merece investimento.
FOLHA - Como comparar escândalos do Brasil ao recente caso de uso
indevido de verbas públicas pelos
parlamentares britânicos?
JOVCHELOVITCH - A corrupção e o
uso do espaço público pelo interesse privado não são um privilégio brasileiro. O episódio
britânico foi um escândalo de
corrupção, de uso indevido de
dinheiro público, como os do
Brasil. Mas no Reino Unido, em
menos de dois meses, havia caído o porta-voz da "House of
Commons" [espécie de Câmara
dos Deputados] e todo o Parlamento havia sido reformado.
A grande diferença está no tipo de imaginação que é vinculada ao espaço público e na capacidade institucional do Estado. No caso britânico, a opinião
pública exige respostas, e o Estado pune os corruptos: tem
gente que vai pra cadeia, outros
sofrem ostracismo político e os
que restaram mudam as leis para evitar novos episódios. Além
disso, os demais Poderes se
mostram de fato independentes e agem com rapidez.
FOLHA - Episódios recorrentes de
corrupção têm gerado pouca reação
na sociedade brasileira. Por quê?
JOVCHELOVITCH - No Brasil, em
geral, há uma reafirmação de
um fatalismo: "a política é assim", "esses caras não têm jeito", "quem pode faz mesmo".
Seria um pouco pesado dizer,
mas existe uma disseminação
de um certo comportamento
corrupto na sociedade brasileira. É o sujeito que suborna o
policial para não levar uma
multa, que compra a carteira de
motorista, que pede favor pessoal ao vereador, que sonega
impostos. Existe uma simetria
entre a rua e a política. A relação com a coisa pública não é só
dos políticos, ela é nossa. Está
tanto nos microespaços do cotidiano como nos macroespaços institucionais brasileiros.
FOLHA - Onde entra a questão da
confiança nessa simetria?
JOVCHELOVITCH - É muito mais
fácil no Brasil você confiar num
vizinho do que em qualquer
instituição ou membro do poder público. Quando a confiança se estabelece entre o cidadão
e o político, ela se dá por meio
de relações clientelistas, não
institucionais. Isso porque as
relações pessoais funcionam.
O político só se torna alguém
de confiança quando ele me faz
um favor pessoal, quando ele
funciona como alguém da minha esfera pessoal. Quem me
representa politicamente nas
instâncias de poder, neste eu
não confio.
FOLHA - Em suas entrevistas com
parlamentares, quais eram seus discursos sobre corrupção?
JOVCHELOVITCH - Na época do
impeachment do Collor, eu me
plantei no Congresso e falei
com muitos parlamentares sobre suas explicações para a corrupção. Diziam que o problema
era o povo brasileiro. Criaram
metáforas como "todo povo
tem o governo que merece".
Eles atribuíam o problema a
um "outro" generalizado, distanciando-se pessoalmente do
problema. Quando eu os questionei sobre os seus papeis individuais nesse cenário, eles se
colocaram como vítimas da
corrupção, e não parte do processo. Ironicamente, muitos
dos entrevistados, anos depois,
foram acusados de corrupção.
FOLHA - Como esses escândalos
afetam a imagem do Brasil?
JOVCHELOVITCH - Afetam muito.
O Brasil está com uma imagem
muito positiva no exterior, impulsionada, principalmente,
pelo crescimento econômico.
Mas cada escândalo representa
um retrocesso. Isso impede a
consolidação da imagem de um
Brasil adulto. Porque fica a
imagem do Brasil que precisa
consolidar sua democracia, lidar com a desigualdade social e
enfrentar a violência. [Já] Com
a Copa e a Olimpíada, a questão
da criminalidade preocupa
muito mais do que a corrupção.
FOLHA - É possível relacionar corrupção com a criminalidade da rua?
JOVCHELOVITCH - A corrupção é
um crime. E o problema do crime, do desvio, na vida pública
brasileira sempre foi muito relacionado com essa nossa dificuldade em consolidar uma vida pública democrática, que
respondesse aos anseios e às
necessidades da população.
A criminalidade é uma patologia social que tem origem, de
certa forma, nas desigualdades
da nossa sociedade. A psicologia clássica descreve a relação
do criminoso com o espaço público exatamente como eu estava descrevendo a relação do político que rouba com a esfera
pública: ausência de investimento no coletivo, no social. A
dinâmica do psicopata é de não
sentir culpa, não se sentir responsável. E essa dinâmica é
muito semelhante à da corrupção na esfera política.
FOLHA - A corrupção sistêmica coloca em risco a democracia no país?
JOVCHELOVITCH - O risco histórico da democracia brasileira, o
da ação militar, me parece distante. Mas esses eventos comprometem a consolidação da
democracia. Numa democracia
consolidada, o cidadão enxerga
o espaço público como de ninguém, porque de todos. Numa
democracia não consolidada, o
espaço público é de ninguém
sem ser de todos; portanto ele
pode ser meu no que diz respeito aos meus interesses particulares. E isso é corrupção.
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