São Paulo, domingo, 8 de março de 1998

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LANTERNA NA POPA
A prepotência do Estado

ROBERTO CAMPOS
Num lúcido artigo em "O Estado de S. Paulo", de 17 de fevereiro, Ives Gandra Martins, jurista eminente e espírito refinado como poucos, sob título "Inflação Legislativa", toca num ponto que liberais curtidos, como eu, vemos com preocupação cada vez mais funda. O Estado vem crescendo e ficando cada vez mais abrangente e sufocante. Até mesmo sem querer, como no caso de Fernando Henrique, que é uma pessoa amena, de vocação para o diálogo, sem personalidade autoritária e certamente sem o menor traço totalitário. Também a maioria dos meus colegas do Congresso, pelo menos na intenção, preferem os valores do convívio democrático. Entretanto, nunca se legislou tanto, tão apressadamente, nunca se invadiram os direitos individuais, nunca ficou tão irremediavelmente confusa a noção do respeito às garantias jurídicas, nunca instituições antes respeitadas se tornaram instrumento de ativismo ideológico, demagogia e estrelismo. O presidente legisla por medida provisória. Os ativistas (e, pior ainda, os bem-intencionados) tentam passar leis sobre tudo, acabando com a privacidade e com a defesa contra a eventual opressão da burocracia a serviço das autoridades de plantão -a pretexto de diminuir a sonegação fiscal, a lavagem de dinheiro para a droga, e por aí a fora. O governo não consegue segurar a criminalidade? Pouco importa, basta desarmar o cidadão comum, de bem, esse que não comete crimes e, diante da insegurança oficializada, pediria pelo menos a ilusão de uma chance de se defender, por pequena que fosse.
Nas grandes linhas, estamos diante de fenômenos bastante generalizados no mundo atual. O Estado cresce, e seus gastos aumentam, mais ou menos por toda a parte, apesar da reação liberalizante que empolgou os países mais modernos desde o começo dos anos 80. Por outro lado, os povos hoje dispõem de um acesso à informação que aumenta exponencialmente. Talvez por isso mesmo há em relação a quase todos os governos sinais de cansaço e aborrecimento, quando não de alienação. Os grandes personagens políticos passam de líderes a comunicadores, ou antes, a apresentadores. Um pouco o que aconteceu com Tony Blair, na Inglaterra.
Por natural sanidade, nosso povo descarrega na piada, não no explosivo. Mas começo a achar difícil ver alguma graça no obtuso processo de erosão dos nossos valores e liberdades. Nada de heróico, de uma grandiosa revolução socialista que afundou na degenerescência burocrática, conforme a expressão do sério pensador marxista E. Mandel. Há dois séculos, T. Jefferson, a grande figura intelectual da Revolução Americana, da qual surgiu a primeira Constituição democrática, que dura até hoje (santa modéstia, comparada com a nossa facúndia constitucional...), escreveu uma frase que viraria lema da antiga UDN, da qual só os mais velhos homens se lembram: "O preço da liberdade é a eterna vigilância". O que estamos vendo em volta, porém, é uma evolução perversa, que de boas intenções em boas intenções vai nos sufocando o direito de escolher.
De certo modo, não se pode isolar "uma causa". Inúmeros fatores entram nisso, numa infinidade de interações. Uma aldeia com meia centena de famílias não teria por que se preocupar muito com a regulamentação do trânsito. E numa aglomeração urbana de 10 ou 15 milhões, o anonimato e a alienação favorecem a fermentação da criminalidade, dificultam as medidas preventivas e complicam a prestação de serviços que, na aldeia, estariam por conta das famílias ou da igreja local. Tudo isso é sabido. Na Europa Ocidental, cuja civilização bem assente e de razoável homogeneidade social facilita um relativo consenso sobre como dividir entre os indivíduos o bolo dos serviços e bens públicos, o governo, em geral, não é percebido como opressivo. As objeções à sua expansão refletem principalmente as preocupações quanto aos seus custos, mas não implicam sérias dúvidas quanto à sua legitimidade.
Nos países anglo-saxões não-europeus e no Japão, parece que tampouco os governos são vistos como inimigos íntimos ameaçadores, íncubos penosos. No Reino Unido, até a subida ao poder de Mrs.Thatcher, havia uma irrigação mal contida de boa parte da população contra os Trabalhistas, que, no entanto, nunca deixaram de fazer um governo claramente democrático. Nos Estados Unidos, porém, desde os anos 70, talvez em parte por causa do traumatismo do Vietnã, existe uma polarização acentuada, e até caricata, entre os partidários do "Estado do Bem-Estar Social" e os adversários do "Big Government".
E não sem razão. A maioria dos americanos estão cansados de pagar cada vez mais (só na década de 80, os gastos de Estados e municipalidades mais do que dobraram) por conta de novas obrigações provenientes das coceiras eleitorais e da covardia dos políticos diante de interesses especiais estridentes. Segundo pesquisas de opinião, os americanos acham que o governo se tornou tão poderoso, que constitui uma ameaça para os direitos e franquias dos cidadãos. Em 91, o candidato à Presidência Ross Perot, um milionário excêntrico sem papas na língua, chegou a ter 35% da preferência dos votos. E muito recentemente, em 1995, 58% do público apoiaria um "terceiro partido", isto é, nem Democratas, nem Republicanos. E também os índices de satisfação do público (aliás, não só nos Estados Unidos como em vários países europeus e no Japão), há meio século não aumentam, apesar do enorme crescimento da renda per capita. Ou seja, a afluência acrescida gera demandas adicionais, mas persiste um descontentamento difuso com a estreiteza do espaço humano individual.
Na sua concepção original conforme as idéias de James Madison, a Constituição americana reservou à Federação poderes bastante limitados, deixando aos Estados muito maior amplitude, e criando um forte sistema de freios e contrapesos exatamente para evitar que o poder central pudesse aumentar ao ponto de pôr em risco as liberdades individuais. Em nosso país é que os inimigos dessas liberdades e defensores do Estado todo-poderoso fantasiam as suas idéias em termos de "cidadania"... O tamanho, em si mesmo, é opressivo, porque a máquina, pesada e lenta, responde mal às demandas individuais e é totalmente privada de "alma", de qualquer qualidade que vagamente lembre sensibilidade, respeito ou dignidade. O burocrata que gosta de submeter o público é anônimo, não deixando ao "súdito" possibilidade de revide eficaz contra a pequena tirania e o arbítrio miúdo. E os gastos com o dinheiro dos outros tendem a ser incontroláveis.
Estamos em ano eleitoral, e o artigo de Ives Gandra Martins me fez pensar no que andará sentindo o povo no meio dessa falta de transparência, que é o contrário da democracia. A primeira condição da dignidade -o indivíduo ser sujeito, e não objeto- é o conhecimento da norma. Espero que não chegue o tempo em que um fiscal entre na casa da gente dizendo: "O cidadão está preso por infração ao item 144 do parágrafo 643 do Decreto 532.867, que regulamenta o artigo 945 da lei 236.984 -e por aí a fora..."


Roberto Campos, 80, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).



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