São Paulo, domingo, 8 de março de 1998

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CRIME
Advogados criticam violação da intimidade e obrigação de delatar transações
Lei de lavagem de dinheiro quebra o sigilo bancário


SAMUEL RODRIGUES BARBOSA
da Equipe de Editorialistas

VINICIUS TORRES FREIRE
Editor de Opinião

Uma lei sancionada esta semana pelo presidente Fernando Henrique Cardoso obriga empresas financeiras, algumas comerciais e mesmo pessoas físicas a comunicar as transações de seus clientes a órgãos fiscalizadores do mercado ou a um conselho composto de membros indicados pelo governo.
A lei em questão é a que define e prevê punições para o crime de lavagem de dinheiro. Mas três de seus artigos permitem a quebra do sigilo bancário e comercial, segundo advogados ouvidos pela Folha.
"A lei viola o direito constitucional à intimidade, impõe a quebra de relações de confiança entre cliente e empresa e abre indiscriminadamente o sigilo das transações financeiras e comerciais", diz o advogado Celso Bandeira de Mello, professor titular de direito administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
O cliente não sabe
Segundo a lei, as empresas devem manter um registro de todas as transações que ultrapassarem um determinado valor.
Tais informações devem ser repassadas, sem o conhecimento do cliente, ao órgão próprio fiscalizador ou regulador da área. Por exemplo, a Comissão de Valores Mobiliários, no que diz respeito às corretoras que operam com ações. No caso de não haver órgão específico para o setor, os dados serão comunicados ao Conselho de Atividades Financeiras (Coaf), composto pelo governo.
O valor mínimo das operações a serem comunicadas também é fixado por esses órgãos, e nos termos que eles definirem. A lei não menciona a exigência de autorização judicial em momento algum desse processo compulsório de comunicação de informações.
Ficam obrigadas a comunicar as transações de seus clientes instituições como bancos, administradoras de cartões de crédito, seguradoras, corretoras de valores, imobiliárias, empresas de leasing e mesmo aquelas que comerciam metais preciosos, antiguidades e jóias, entre outras.
Mesmo que o montante de uma operação financeira ou da compra de um imóvel não ultrapasse o valor limite, as empresas ficam obrigadas a comunicá-las aos órgãos fiscalizadores caso acreditem haver indício de crime no negócio.
A lei foi aprovada em votação simbólica no Senado, em fevereiro, e sancionada sem vetos por Fernando Henrique Cardoso.
"Essa lei acaba violando a Constituição no artigo 5º, que protege a intimidade e o sigilo de dados", afirma Sérgio Pitombo, professor de processo penal da Faculdade de Direito da USP.
Segundo o professor, não desaparece apenas o sigilo bancário, mas também o comercial, opinião compartilhada pelo advogado e professor de direito constitucional da PUC-SP Celso Bastos.
"A lei tem vários dispositivos inconstitucionais. Sua aplicação significa abrir mão de garantias democráticas e entrar em um regime autoritário", diz Bastos.
"Para quebrar o sigilo é necessária uma apuração prévia, que demonstre a suspeita, e a seguir uma autorização judicial. Essa lei é mais um ato autoritário do governo e do Congresso", avalia o professor Bandeira de Mello.
Na mesma linha, o advogado Samuel Mac Dowell de Figueiredo afirma que, por falta de instituições mais consistentes, o país está recorrendo a "medidas persecutórias e policialescas", tais como, segundo ele, alguns dispositivos da lei de lavagem de dinheiro.
Na opinião de Eros Grau, professor titular de direito econômico da USP, a lei é inconstitucional no que diz respeito a obrigação, imposta às empresas, de comunicar informações sobre seus clientes, além de instituir a delação.
Sérgio Pitombo, da USP, também ressalta o problema da obrigação de denunciar certas transações: "O artigo 11 é um incentivo para quem delatar. Mesmo que as informações sejam erradas, quem denuncia não é responsabilizado civil e administrativamente."
Lei não quebra sigilo
O advogado Tercio Sampaio Ferraz Jr., professor titular de teoria geral do direito da USP, por sua vez, discorda das críticas.
"Não há quebra de sigilo, pois informar as transações, nos termos da lei, não abrange a origem e destinação do dinheiro", explica.
"Com indícios de lavagem, o Judiciário deve ser procurado para autorizar a quebra de sigilo. É assim que deve funcionar, do contrário há inconstitucionalidade", observa, no entanto, Ferraz Jr.
O professor acredita que o dever de informar sobre as transações "é a única maneira de combater o tráfico, que tem um poder por vezes mais forte que o do Estado".
"O Judiciário deve se preparar para defender os direitos dos inocentes e para punir com eficácia os criminosos", afirma.



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