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São Paulo, quarta-feira, 08 de outubro de 2003

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ELIO GASPARI

O governo criou o anarcoliberalismo

Lula inovou. Criou o anarcoliberalismo. Só isso explica que o seu ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, ataque publicamente a posição defendida pelos negociadores brasileiros na reunião de Trinidad e Tobago, na qual se discutiram as eventuais bases de criação da Alca. O doutor Rodrigues estranhou a posição brasileira, chamou-a de "rígida e intransigente" e, pelo que conta, ficou "encabulado".
Mais encabulada fica a patuléia, que paga o salário do doutor, do chanceler Celso Amorim e de Lula. Para usar uma comparação paleolítica ao gosto dos tempos, o ministro da Agricultura matou a bola no peito, viu que o Itamaraty estava mal colocado e chutou em gol. Marcou para os Estados Unidos.
Como cidadão, o doutor Rodrigues pode dizer qualquer coisa, mas, como ministro, não pode puxar o tapete de uma missão negociadora brasileira. Talvez ele não saiba, mas essa é a técnica predileta da diplomacia americana. Seu negócio é fatiar o governo. Negocia agricultura com o ministro da Agricultura e turismo com o ministro do Turismo. Essa esperteza deixa ao Itamaraty a tarefa de organizar coquetéis e cuidar de mapas velhos (coisa que já não sabe fazer direito).
Os americanos trabalham assim desde os anos 60, sempre com bons resultados. Prevalecem porque são competentes e porque defendem seus interesses com ferocidade. Veja-se o caso do calote da AES, transformado em perdão dos juros pelo BNDES. Se um ministro do companheiro Bush fizer o que fez o doutor brasileiro, está na rua no dia seguinte.
Houve uma época em que embaixador dos Estados Unidos, com o propósito de desmoralizar a diplomacia nacional, chamava o núcleo negociador da chancelaria de "os barbudinhos". Eles ficaram grisalhos e Lula lhes deu a oportunidade de articular uma política externa. O chanceler Celso Amorim pode ter exagerado na marquetagem, criando uma sigla de linha de ônibus (G20) temperada com linguagem esportiva ("vencemos em Cancún"). Nada de mais quando o presidente da República compara a reunião da Organização Mundial do Comércio a uma partida de truco. É uma diplomacia mal enfeitada, mas é a política externa da República. Para usar outra comparação paleolítica: os ministros podem gritar no vestiário, mas não podem levar o lero-lero à galera.
O anarcoliberalismo é uma novidade. Habitualmente, a esquerda produz bagunça, e a direita, ordem. Bagunça conservadora é coisa rara. O anarcoliberalismo leva Lula e seus comissários José Dirceu e José Genoino a tratar a esquerda do PT como um agrupamento de adversários. Na outra ponta, apareceu, dentro do ministério, uma Heloísa Helena hostilizando publicamente os negociadores do Itamaraty. Há uma diferença entre um deputado que vota contra a reforma da Previdência e um ministro que ataca uma posição assumida pelo Itamaraty numa negociação internacional. A discordância do deputado faz parte da competição política interna e, quando muito, a oposição ganha.
No caso do ministro, quem ganha é o adversário estrangeiro. Admita-se que esse adversário esteja certo e o Itamaraty errado, como aconteceu quando os barbudinhos hostilizavam a política de direitos humanos do presidente Jimmy Carter. Muda-se a política, mas não se busca esse resultado puxando o tapete dos negociadores.
Resta saber se passa pela cabeça dos comissários suspender o ministro. Para ficar nas confusões recentes, Roberto Rodrigues ficaria proibido de falar, e Benedita da Silva, de viajar.


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