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Entrevista da 2ª/Alexandre Kaleche
Chefe de envelhecimento da OMS defende que os médicos aprendam a lidar com a terceira idade e que o jovem seja sensibilizado para o fato de que "envelhecer é bom'
"Brasil precisa mudar rede de saúde para atender idoso"
O Brasil precisa mudar a rede de atenção básica à saúde para atender as necessidades da população idosa,
que atinge a marca de 17,7 milhões no país. A análise é
de Alexandre Kalache, chefe do programa de envelhecimento e saúde da OMS (Organização Mundial da
Saúde), que está no Brasil para lançar um guia mundial em que o Rio aparece como cidade amiga do idoso.
CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL
Às vésperas de completar 62
anos (dia 17) e se aposentar da
OMS, Kalache vai montar no
Rio de Janeiro o instituto latino-americano de gerontologia,
ligado à Universidade de Londres e que tem como parceiros
o Banco Mundial e a Academia
de Medicina de Nova York.
"Em vez de ir para casa assistir à TV, vou agitar muito. Vamos levar o Brasil para o mapa
da gerontologia internacional e
vice-versa. Vou continuar ativo
por muitos anos e, depois, vou
plantar batatas na minha casinha na Espanha", diz ele, dois
filhos e uma neta.
Há 33 anos morando no exterior, o carioca Kalache é PhD
em epidemiologia pela Universidade de Oxford, foi fundador
da Unidade de Epidemiologia
do Envelhecimento da Universidade de Londres e criador do
primeiro mestrado em promoção da saúde da Europa. A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha de Nova York, por telefone, na última sexta.
FOLHA - A OMS tem difundido o
conceito de envelhecimento ativo,
mas, no Brasil, envelhecer com qualidade ainda é para poucos. Quais
estratégias o país precisa adotar para colocar o discurso em prática?
ALEXANDRE KALACHE - A definição
do envelhecimento ativo é baseada em três pilares: saúde,
participação e segurança. Na
saúde, a coisa mais importante
no Brasil é reforçar, capacitar a
rede de atenção primária para
que ela esteja mais voltada às
necessidades dessa população
que envelhece. Hoje o SUS está
muito voltado para a saúde materno-infantil.
A OMS tem desenvolvido estudos-pilotos, criando uma espécie de caixa de ferramentas
sobre como fazer para que o
centro de saúde se torne mais
amigo do idoso. No Brasil, envolvemos dois centros, em São
Paulo [em São Miguel Paulista]
e no Rio [em Manguinhos]. Simulamos o envelhecimento,
colocamos a equipe no centro
de saúde simulando como se tivesse catarata, usando uma
lente meio opaca, peso nas pernas, nas coxas, braços, grãos no
sapato para doer um pouco, cera no ouvido. As pessoas nunca
esquecem dessa experiência.
Também precisamos mudar
aspectos administrativos. Existem postos de saúde que não
têm nenhum sistema de marcação de consulta. Esses pobres
idosos levantam às 5h da manhã, vão até o centro, recebem
um número e, ao final da manhã, descobrem que o médico
já foi embora e que ele não será
mais atendido. Isso é um absurdo, uma falta de respeito. Em
relação ao ambiente físico, o
centro de saúde precisa eliminar as barreiras físicas, colocar
rampas, elevadores, sala de espera mais confortável com
acesso ao banheiro.
FOLHA - Qualidade de vida na velhice está ou não diretamente ligada
a um maior poder aquisitivo?
KALACHE - É muito mais difícil
conseguir qualidade de vida se
não tiver um teto sobre a sua
cabeça, se não tiver a certeza de
como se alimentar ou, se ficar
doente, se terá o mínimo de assistência médica. Por outro lado, você não precisa ser milionário ou rico para ter qualidade
de vida. Você vê milhões de brasileiros que estão envelhecendo, inseridos na sua comunidade, com suas famílias, vivendo
bem. Estou conversando com
você de Nova York, uma cidade
de primeiríssimo mundo, onde
você encontra idosos que, embora tenham suas necessidades
básicas satisfeitas, vivem isolados, numa família fragmentada, reflexo das grandes massas
migratórias. São pessoas que
estão envelhecendo fora do seu
meio ambiente. Em São Paulo,
por exemplo, a gente vê o imigrante nordestino, a mulher
que foi trabalhar em casas de
família e que, muitas vezes, não
constituiu a sua própria família, e que, ao envelhecer, está só,
triste, sem qualidade de vida.
FOLHA - O sistema de saúde continua a enfatizar o cuidado com as
doenças agudas, enquanto as que
mais afetam os idosos são as crônicas. Isso não tem que ser revisto?
KALACHE - Sem dúvida. Temos
no Brasil a idéia de que as doenças que podem ser prevenidas
são as infecciosas e que as
doenças não-transmissíveis
são inevitáveis dentro do processo de envelhecimento. Hoje
há muita gente com 60 anos e
que está muito mal e outros
com 80 que estão muito bem.
Se você controlar apenas quatro fatores de risco, o fumo, a
dieta inadequada, a falta de
exercício físico e o consumo excessivo de álcool, já terá um impacto muito grande. Se a gente
não tiver política preventiva, de
promoção de saúde fortemente
ativa, isso, que já é um problema de saúde no país, vai se tornar uma epidemia.
Em segundo lugar, mesmo
que o indivíduo se comporte
muito bem, tenha um estilo de
vida saudável, você ainda tem
um ingrediente social muito
grande. Por exemplo, na Inglaterra, se você compara as classes sociais A e B com as D e E,
você tem um excesso de risco,
que se traduz na redução de oito anos na expectativa de vida
[das D e E], mesmo aqueles
mais pobres que nunca fumaram, praticam exercício físico e
comem razoavelmente bem.
No entanto, a diferença social, talvez pela falta de cidadania e auto-estima, faz com que
os mais pobres vivam muito
menos mesmo vivendo no mesmo ambiente físico. É preciso
levar em conta essas determinantes sociais e agir sobre elas.
FOLHA - Temos no Brasil perto de
550 geriatras contra 30 mil pediatras. Com o envelhecimento da população, esse quadro deve mudar?
KALACHE - Até certo ponto. A
gente não vai conseguir formar
geriatras em quantidade para
atender, em planos mundiais, 2
bilhões de idosos no ano de
2060. A gente vai poder fazer
com que todos os profissionais
de saúde saibam aquilo que seja
a essência, a base da atenção do
idoso. Estou muito mais interessado em que todos os ortopedistas de amanhã, todos os
oftalmologistas, todos ginecologistas, todos cirurgiões saibam lidar com idosos e entendam o mínimo sobre a fisiologia do idoso, a anatomia, a depressão, a saúde mental do que
formar especialistas. Do contrário, o risco é você acabar medicalizando e tornando o envelhecimento uma especialidade
e não uma etapa da vida. O papel do geriatra é muito importante porque, você tendo bons
geriatras, terá bons treinadores
daqueles profissionais que precisam ser treinados.
FOLHA - O que o futuro médico
precisa aprender sobre o idoso?
KALACHE - A OMS e a Associação Internacional de Geriatria
e Gerontologia lançaram 15
pontos de currículo mínimo sobre cuidados relacionados ao
envelhecimento que todos os
estudantes de medicina deveriam ter: anatomia, farmacologia, a manifestação clínica das
doenças, que é diferente quando você tem 80 anos do que
num adulto de 40, como o organismo responde às dosagens de
medicamentos etc. Daqui a 40
anos, o mundo terá envelhecido de forma irreconhecível. O
médico vai lidar com mais e
mais e mais idosos. Se você,
desde o início, não tiver a atitude correta e o conhecimento
adequado, você vai fazer mal,
mesmo que inadvertidamente.
E não só em medicina, mas em
enfermagem, em arquitetura,
em direito. Temos que sensibilizar a juventude de que o país
está envelhecendo e que isso é
uma coisa boa, que envelhecer
é a negação da morte precoce.
FOLHA - O modelo de aposentadoria não-contributiva do Brasil continuará sendo sustentável?
KALACHE - Vários estudos mostram que com 2% do Produto
Interno Bruto você consegue
atender as necessidades de
mais de 7 milhões de brasileiros. Se a economia crescer, como tem crescido, não há nenhuma razão para que isso não seja sustentável. Você tem que
ver o que a sociedade está ganhando e não o que está perdendo. Ela "perde" 2% do PIB,
mas tira da miséria 25 milhões
de brasileiros [familiares dos
aposentados]. Na avaliação do
Banco Mundial, modelos como
o Brasil e da África do Sul, que
são muito parecidos, demonstram a sustentabilidade. O que
não é sustentável é continuar
com privilégios e distorções em
que alguns poucos pesam 50,
60, 70 vezes mais do que esses
miseráveis US$ 100 [da aposentadoria não-contributiva].
Esses são os pesos que estão fazendo com que o seguro social
no Brasil se torne inviável.
FOLHA - Há no país uma cultura pelo padrão de beleza física jovem. É
mais difícil para o brasileiro encarar
o envelhecimento?
KALACHE - Fica mais difícil, não
há dúvida que existe essa obsessão. Por outro lado, se você
anda pelas ruas de Copacabana,
você vê milhares de pessoas
idosas. E, embora em choque
com a cultura do corpo, com a
idealização da juventude, você
vê pessoas de todos os formatos
de corpo, pessoas gordas, magras. Existe no Brasil uma
adaptação, uma coisa mais flexível, que não consegue punir
aqueles que fogem à regra.
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