São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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ENTREVISTA

Cientista político sugere a Lula ousadia dos suecos, que "inventaram" o Estado de bem-estar contra ortodoxia dos anos 30

Para Fiori, "revolta social" será crescente

CLAUDIA ANTUNES
COORDENADORA DE REDAÇÃO DA SUCURSAL DO RIO

Um dos principais críticos do projeto tucano dos anos 90, o cientista político José Luís Fiori parece tão insatisfeito com o rumo do governo Lula quanto o resto da esquerda brasileira. Mas ele acredita que o problema vai muito além do governo e foi buscar suas raízes na história dos socialistas e de suas experiências no Executivo.
Em sua pesquisa, Fiori, que é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), alinhou as dificuldades dos socialistas de terem programas originais de "gestão do capitalismo", justamente porque nasceram para lutar pelo fim do sistema, e não para administrá-lo.
Essa retrospectiva histórica foi o tema desta entrevista à Folha, na qual Fiori, 58, afirma que o Brasil não pode suportar, como a Europa suporta, as políticas da Terceira Via, última etapa do revisionismo social-democrata.
Ele cobra do governo petista "a ousadia dos suecos", que nos anos 30 inventaram o Estado de bem-estar social, "na contramão da ortodoxia da época". Mas descarta qualquer mudança enquanto a política econômica estiver na mão de "militantes do PSDB".
"Não adianta sentar em cima da tampa da panela. É melhor olhar de frente e assumir que a maioria dos brasileiros não ganha nada com esse projeto e não tem o que perder no médio prazo. Portanto, é de se esperar uma revolta social crescente", diz Fiori, autor de "Brasil no Espaço" e co-autor de "Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações", entre outros livros.
Abaixo, os principais trechos da entrevista:

Folha - Qual a relação entre o governo Lula e seu estudo sobre as dificuldades da esquerda de gerir o capitalismo?
José Luís Fiori -
O governo provocou minha reflexão, mas faz tempo que acompanho esse tema. Os socialistas sempre discutiram muito questões de estratégia e de organização partidária, ou grandes temas teóricos, mas muito menos a gestão do Estado e da economia capitalista e, em particular, o problema de sua recorrente transformação quando chegam ao governo, explicada de modo simplista pela "teoria do purgatório": a necessidade de passar um tempo de joelhos para demonstrar que não vão mais jogar pedra em ninguém.
Meu estudo diz respeito a um grupo minoritário dentro e fora do governo de coalizão do presidente Lula, mas vai muito além do governo, partindo da Revolução Inglesa de 1646/48.

Folha - O senhor fala de um enigma que nasceu com o pensamento socialista e que continua sem resposta. Pode explicar melhor isso?
Fiori -
Gerrard Winstanley, líder intelectual da ala radical do exército de [Oliver] Cromwell, talvez tenha sido o primeiro a apresentar um programa comunista de governo para uma república. Para ele, não haveria liberdade enquanto não houvesse igualdade econômica, que só seria alcançada com a propriedade comunitária da terra.
Essa idéia reapareceu várias vezes no século seguinte, mas talvez tenha sido com [Jean-Jacques] Rousseau que ela deu um salto estratégico, quando ele propôs, na segunda metade do século 18, que o Estado deveria ser o único proprietário, eliminando-se a origem de todas as desigualdades.
No século 19, essa idéia assumiu uma forma mais consistente no programa mínimo de governo proposto por [Karl] Marx no final do Manifesto Comunista, de 1848. Só que Marx aumentou a dificuldade da equação ao propor simultaneamente a estatização da propriedade privada como caminho para o socialismo e como ponto de chegada do socialismo, quando a propriedade privada e o Estado deveriam desaparecer.
Desde então, ora a propriedade e o Estado devem desaparecer, ora aparecem como instrumentos indispensáveis de poder para a construção do socialismo, numa circularidade que confunde os socialistas há muito tempo.

Folha - Como a esquerda lidou com essa contradição?
Fiori -
Houve três respostas diferentes. A primeira foi a dos socialistas utópicos, discípulos mais diretos de Winstanley, e depois dos anarquistas, que se colocaram contra todo tipo de poder e de Estado. Eles sempre defenderam a coletivização da terra e depois formas cooperativas de produção industrial, além da democracia direta. Sempre se negaram a discutir o que fosse uma gestão socialista do capitalismo.
A segunda resposta foi a das revoluções comunistas, que optaram pela coletivização da propriedade e pela direção estatal e centralizada da economia, na linha anunciada no Manifesto. A crise dessas experiências colocou-as no limbo da história e até hoje não se fez uma avaliação rigorosa de seus sucessos e fracassos.
Mas foram os socialistas europeus que mais pensaram essa contradição e que definiram os dois principais projetos de uma espécie de gestão igualitária do capitalismo.

Folha - Que projetos foram esses?
Fiori -
O primeiro foi o dos partidos social-democratas ou trabalhistas da Alemanha, da Inglaterra e dos países nórdicos, que buscaram a construção do chamado Estado de bem-estar social, com políticas de pleno emprego e proteção universal, aplicadas por quase todos os governos social-democratas entre 1946 e 1980.
O segundo projeto, cujo principal formulador talvez tenha sido o Partido Comunista Francês, partia do conceito de "capitalismo organizado" e apostava na possibilidade de um sistema mais igualitário, regulado e planejado a partir de um núcleo econômico estratégico estatal. Seu paradoxo é que acabou sendo o programa vitorioso de vários governos do pós-Segunda Guerra, todos conservadores, sobretudo na França e no Japão, sem contar outros casos de desenvolvimentismo fora do núcleo das grandes potências.

Folha - O que levou os social-democratas a desistir do projeto de derrubar o capitalismo?
Fiori -
Essa história pode ser resumida nas grandes ondas revisionistas em relação às idéias originais de Marx, para quem o capitalismo era sinônimo de progresso, mas também de desigualdade e crises sucessivas, que acabariam abrindo o caminho de sua superação. Essas revisões aconteceram, sobretudo, em função de estratégias eleitorais.
O primeiro e mais famoso dos revisionistas, o alemão Eduard Bernstein, propôs, em 1894, uma primeira adequação das idéias de Marx às novas formas do capitalismo. Para ele, a natureza do sistema havia mudado e já não tendia mais a uma crise final nem a uma pauperização contínua da classe operária. O socialismo seria uma construção lenta a ser feita com base no poder conquistado eleitoralmente.
Essa tese já era vitoriosa na hora da segunda onda revisionista dos anos 50 e 60, quando foi consagrada pela social-democracia alemã. Abandona-se a idéia da revolução e da estatização, só justificada em nome da eficiência econômica, e o que se propõe é a redistribuição de renda e de oportunidades por meio do pleno emprego e de políticas fiscais. Essa foi a grande mudança: socialistas e social-democratas começaram a ver no sucesso do capitalismo o caminho do seu próprio sucesso, a considerar que as políticas pró-capital seriam também, a médio prazo, pró-trabalho.

Folha - O Estado de bem-estar social foi mesmo obra dos social-democratas ou fruto de um momento histórico específico?
Fiori -
As duas coisas. Seu impulso fundamental veio dos social-democratas, mas não há dúvida de que a partir de 1945 foi uma alternativa que contou a seu favor com o efeito-solidariedade da guerra e com a concorrência do comunismo, para não falar no apoio americano, até os anos 70, à autonomia das políticas econômicas nacionais.
Antes disso, porém, houve a coragem dos social-democratas suecos, caso quase único de invenção de um novo caminho na contramão da ortodoxia de uma época. Em coalizão com o Partido Agrário, eles conseguiram tirar a Suécia da recessão entre 1933 e 1938, inventando o que seria um consenso quase universal até o início da era neoliberal: o Estado de bem-estar e as políticas ativas no campo macroeconômico, as mesmas que receberam depois o nome de keynesianas [do inglês John Maynard Keynes].

Folha - Quais foram as circunstâncias dessa experiência?
Fiori -
Foi na Suécia que pela primeira vez um partido social-democrata fez maioria no Parlamento e enfrentou o problema de gerir uma economia capitalista. Eles utilizaram uma política econômica anticíclica inspirada pelos economistas da Escola de Estocolmo. Inventaram políticas de criação de empregos, de construção de habitações populares, de proteção social universal etc.
No início, foram as exportações que puxaram a economia para fora da crise, mas, a partir de 1934, o crescimento econômico sueco já era comandado pela demanda interna, empurrada pelo investimento público. Os social-democratas suecos também não tiveram receio de recorrer a políticas de corte mercantilista, protegendo sua produção doméstica, em particular a agricultura. São coisas que hoje parecem simples e até antiquadas, mas que foram revolucionárias no seu tempo.

Folha - O que o senhor chama de "teoria do purgatório" é um fenômeno recente?
Fiori -
Não, é recorrente desde o início do século 20, quando os socialistas participaram de governos de coalizão durante as crises inflacionárias que se seguiram à Primeira Guerra. Na maioria dos casos, eles ficaram paralisados e foram derrotados pela "síndrome de [Rudolf] Hilferding", o grande economista marxista e social-democrata austríaco.
Ao assumir o Ministério da Fazenda da Alemanha, em 1928, Hilferding apostou numa política ortodoxa que aumentou a recessão e o desemprego, sem conseguir controlar a inflação. Como conseqüência, foi expelido do ministério. O governo foi entregue logo depois a Hitler. Algo análogo, mas com efeitos menos trágicos, aconteceu com o Partido Trabalhista inglês, em 1929, e com o governo de Léon Blum, na França [1936/ 1937].
O fenômeno voltaria a ocorrer bem mais tarde. Em 1982, por exemplo, os socialistas franceses responderam à crise do franco optando por uma política macroeconômica ortodoxa.

Folha - Mas aí o quadro internacional já havia mudado de novo, não?
Fiori -
- Na verdade, a convergência entre políticas pró-capital e pró-trabalho só existiu nos 30 anos posteriores à Segunda Guerra, na chamada era de ouro do capitalismo. Não existiu antes nem depois, durante a restauração conservadora, quando o capitalismo voltou a ser igual ao que havia dito Marx: uma gigantesca força geradora de globalização e de progresso, mas, ao mesmo tempo, de desigualdade e crises.

Folha - Sem revolução no horizonte, qual pode ser a resposta da esquerda a essa nova era?
Fiori -
A única resposta até agora foi a terceira onda revisionista, com o Novo Trabalhismo de Tony Blair na Inglaterra e a Terceira Via de Blair, do alemão [Gerhard] Schröder, do francês [Lionel] Jospin e do italiano [Massino] D'Alema e de Fernando Henrique Cardoso. Só que agora não se tratava mais de concessões em nome da eficácia eleitoral, mas de uma nova estratégia de gestão do capitalismo que propunha desmontar parte do que foi construído antes.
As políticas pró-capital de tipo neoliberal provocaram, em 20 anos, uma reconcentração gigantesca da riqueza, além de reduzirem o emprego e o salário em todos os países onde foram aplicadas. Hoje, os socialistas chegaram a um beco que parece quase sem saída, adotando uma estratégia alheia que os descaracteriza.

Folha - No caso do governo Lula, há saída para esse beco?
Fiori -
Acho que ainda cabe a Lula, no tempo que lhe resta do mandato, demonstrar se terá ou não a ousadia dos suecos em 1930, para inventar um novo caminho para este país. Não se trata de fazer da Suécia um modelo a ser repetido, mas de ter a coragem de inovar e de não se submeter ao feijão com arroz imposto pelos Tesouros do mundo, sempre.

Folha - Isso ainda é possível?
Fiori -
É perfeitamente possível. Mas tem que haver antes de mais nada a disposição de mudar, de inovar, mesmo ao preço de errar. Quem não erra não avança.
Mas será impossível que isso aconteça enquanto o núcleo da política econômica continuar nas mãos de pessoas que são militantes, eleitores e até parlamentares do PSDB, que, além de estarem ligados ao principal partido da oposição, operam como representantes ou conexão dos interesses financeiros internacionais, públicos e privados.
Essas pessoas não querem descobrir novos caminhos. Estão satisfeitas com o que está aí. Não só não sentem falta de uma opção como lutam contra qualquer tipo de alternativa. Para elas, a hora da utopia já chegou, é só sentar e esperar uma ou duas décadas mais, até que o capital internacional descubra a beleza dos mercados brasileiros, apesar do estado de recessão, e a credibilidade infinita dos seus bons gestores.

Folha - Essa utopia é sustentável politicamente?
Fiori -
Ao contrário do que muitos pensam, ela atende plenamente aos interesses de todas as grandes facções capitalistas e de amplos setores rentistas da classe média -basta ver os dados sobre os balanços e os lucros dos bancos e das grandes empresas industriais nestes anos recentes. Por isso ela dura há anos.
O problema é que ela é radicalmente desagregadora pelo lado do trabalho e do povo, porque não produz crescimento, nem emprego, nem renda, nem traz ou promete mobilidade social.
Por isso nós temos uma sensação de quase esquizofrenia quando lemos o que dizem, por exemplo, os brasileiros reunidos recentemente na praia de Comandatuba, na Bahia, em torno das figuras do ministro da Fazenda do governo Lula e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, hoje aclamado como a principal liderança da direita brasileira, e vemos o que está acontecendo com o povo e a sociedade, que estão estourando por todo lado.
E não adianta sentar em cima da tampa da panela, é melhor olhar de frente e assumir como um dado de realidade que a maioria dos brasileiros não ganha nada com esse projeto e não tem o que perder no médio prazo, portanto é de se esperar uma revolta social crescente, gostem ou não os senhores de Comandatuba.

Folha - É comum a distinção entre capital especulativo e capital produtivo. Essa diferença acabou?
Fiori -
A separação entre capital especulativo-financeiro e capital industrial é uma ficção que não existe mais, a não ser no caso das fabriquetas e botequins da economia de mercado, que, como dizia [o historiador francês Fernand] Braudel, nada tem a ver com o capitalismo, o mundo dos grandes predadores, que vivem do lucro extraordinário e revolucionam permanentemente as condições de produção e troca.

Folha - Essa remontagem histórica o deixa pessimista?
Fiori-
Não. Eu vejo o beco em que estão as idéias e as políticas socialistas como um desafio.
Acho que hoje existe muito pouco espaço e ânimo para alguma inovação entre os social-democratas europeus, que estão divididos e paralisados em quase todos os campos.
Em compensação, nós vivemos num país tão desigual que é impossível que nossa sociedade não encontre um caminho inovador. O que pode ser suportável na Alemanha, na França ou mesmo na Espanha, ancorada na União Européia, não é suportável no Brasil.
Aqui a Terceira Via é de direita, o que torna uma obrigação pensar um novo caminho e uma nova estratégia de gestão igualitarizante do capitalismo brasileiro, mesmo que por meio de um doloroso processo de tentativas e erros.



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