São Paulo, domingo, 9 de maio de 1999

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Crepúsculo

Elio Gaspari

Um conhecedor das mudanças que o exercício da Presidência provoca na alma humana assombrou-se ao perceber que FFHH está passando cada vez mais tempo no Alvorada, em detrimento do expediente de oito horas do Planalto.
Ao contrário dos escriturários, os presidentes não precisam ficar no gabinete para dar conta do serviço, mas os dois palácios de Brasília têm cargas magnéticas opostas. O Planalto atrai problemas, enquanto o Alvorada os repele.
Qualquer ministro pode se habilitar a pedir uma audiência extraordinária no Planalto, mas se constrange de entrar no Alvorada com uma pasta cheia de confusões.
Nas palavras de um ex-ocupante dos dois imóveis: "No Planalto, a alvorada é feia. No Alvorada, o crepúsculo é bonito".

Telelenda

Correu por Brasília uma lenda segundo a qual o Ministério das Comunicações seria extinto depois que a Agência Nacional de Telecomunicações estivesse estruturada.
Sem ter recorrido a um número significativo de novas contratações, a Anatel já tem perto de mil funcionários.
O ministério continua no mesmo lugar.

A lei atolou

Está encalhado no Gabinete Civil da Presidência o projeto de lei que trata dos crimes contra a Previdência Social. Destina-se a coibir fraudes, sobretudo malversações, praticadas nos sistemas de computadores.
Essa lei foi anunciada ao país e prometida ao FMI em novembro do ano passado, dentro do grande programa de ajuste fiscal.
A Previdência Social hospeda um calote histórico de R$ 53 bilhões. Boa parte dele resulta de juros e multas. Admitindo-se que, se conseguisse receber apenas metade do principal, a conta ficaria em R$ 10 bilhões, equivalentes a dois meses de arrecadação.
A nova lei não teria efeito retroativo, mas seria útil para impedir a expansão da voçoroca. Entre outras coisas, estabelece penas para crimes que até agora saem de graça.
Todas as medidas destinadas a tomar dinheiro de quem trabalha andaram. Está atolada a única que se destina a punir quem frauda.

Urucubaca

Na semana passada, um diretor de instituição financeira americana foi à Security Exchange Comission para prestar o exame de proficiência necessário para habilitar-se às novas funções que ia exercer na empresa em que trabalha. A SEC cuida da saúde do mercado financeiro americano. Nesse exame, os cidadãos precisam mostrar conhecimentos legais e técnicos suficientes para exercer suas funções nas empresas privadas.
O candidato teve que descrever os procedimentos necessários para dar andamento a uma operação na qual autoridades brasileiras estivessem mandando dólares para serem lavados no mercado americano.
O caso apresentado era meramente hipotético. Não reflete uma situação, mas um clima.

Em cartaz: "Matéria Requentada 2"

Para a alegria de todos, vem aí o novo capítulo de "Guerra nas Estrelas", mas, para tristeza geral, chegou também o "Matéria Requentada 2". No dia 23 de fevereiro, o deputado Aloizio Mercadante anunciou que tinha uma lista de nove bancos cujos ganhos com operações de câmbio às vésperas da desvalorização do real soava estranha. O Banco Central respondeu chamando o assunto de "matéria requentada".
Dois meses depois, o deputado foi à CPI do Senado e informou que, só no mercado de apostas da BM&F, 24 casas ganharam R$ 10 bilhões em menos de um mês. O governo corrige: o câmbio rendeu só R$ 5,2 bilhões. Tudo bem, a ekipekonômica pode ficar com o troco. Ele equivale, em dinheiro de hoje, a duas vezes o patrimônio deixado pelo maior banqueiro do século, John Pierpont Morgan, ao morrer, em 1913. Em um mês, o Banco Central perdeu R$ 7,3 bilhões em câmbio e juros. São 3,5 Morgans.
Os números mostrados pelo deputado foram recebidos pela bancada governista da CPI como se fossem matéria requentada. Não era. Ninguém havia divulgado a lista dos bancos com a planilha de seus movimentos cambiais.
Os senadores colocaram-se numa posição difícil. Se Mercadante lhes dissesse, em 1944, que o 3º Reich tinha montado uma rede de campos extermínio, poderiam classificar a denúncia de matéria requentada, visto que "The New York Times" noticiara essa prática dois anos antes, numa nota de seis centímetros, em suas páginas internas.
A ekipekonômica e os senadores governistas insistem em dizer que a mudança no mercado de câmbio foi compreensível, pois ocorrera em ocasiões anteriores, como a crise asiática de 1997 e a russa de setembro do ano seguinte. Trata-se de um insulto à inteligência alheia. As crises da Ásia e da Rússia eram fatos públicos. A queda de Gustavo Franco da presidência do Banco Central e a consequente desvalorização da moeda, não.
É certo que o vendedor de automóveis do senador Romero Jucá achava que Franco cairia levando consigo a moeda. Esse ilustre financista mostrou-se mais astuto que FFHH e o ministro Pedro Malan, pois se deu conta da insustentabilidade do real antes deles. O que ele não sabia era a data da queda de Franco. Ninguém ganhou dinheiro percebendo que o câmbio estava podre. Ganhou quem soube quando Franco cairia.
Os senadores, e até mesmo o doutor Armínio Fraga, vêm repetindo que a notícia da queda de Gustavo Franco estava disseminada. Talvez di$$eminada. Isso porque no dia 11, segunda-feira, o porta-voz da Presidência da República, Sergio Amaral, informou o seguinte a respeito dos boatos segundo os quais era iminente a saída de Pedro Malan do Ministério da Fazenda e de Franco do Banco Central:
"Não têm fundamento os rumores sobre a saída do governo de ambos. São peças fundamentais".
Admita-se que Amaral não tivesse outro caminho. Se o dele estava certo, errado esteve o de FFHH, no dia seguinte, véspera da desvalorização. Colocado diante da mesma pergunta, respondeu que Malan ficava. Como lembrou Fraga à CPI, "não consta do noticiário a mesma referência a Gustavo Franco". O atual presidente do BC juntou essa declaração do presidente a duas notícias publicadas na imprensa para informar ao Senado: "Os sinais de que algo estava em curso pareciam claros".
Claros para quem, cara-pálida?
Se a declaração de FFHH foi dada a tempo de permitir a corrida da segunda-feira, Fraga decifrou um pedaço da charada: o presidente da República sinalizou a mudança. Ainda que tenha perdido no dia seguinte dinheiro de todos os brasileiros, o sinal só foi percebido por alguns afortunados. É possível que a declaração de FFHH tenha sido feita depois do fechamento do mercado. Nesse caso, a argumentação do atual presidente do Banco Central vale uma banana podre. Eis aí um problema para o senador Jucá discutir com o seu vendedor de automóveis.
A questão continua do mesmo tamanho:
1) Entre a sexta-feira, dia 9, quando Gustavo Franco soube que sairia do BC, e o fim da tarde do dia 12, quando o mercado fartou-se, só quatro pessoas precisavam saber (e sabiam) de sua queda: o próprio Franco, seu substituto, o presidente da República e o ministro da Fazenda. Se mais alguém soube, o problema é deles.
2) Refinando a curiosidade, pode-se ler nas planilhas das operações financeiras que a queda de Franco não vazou até o fim da tarde de segunda-feira. Foi no dia seguinte que a torrefadora de dinheiro público funcionou a todo vapor.
Cinco anos de câmbio sobrevalorizado podem ter custado à sociedade brasileira algo como US$ 100 bilhões. Essa política produziu um dos maiores processos de concentração de riqueza já ocorridos no país. Há quem defenda o conjunto da obra, até com argumentos inteligentes. Por mais inepta que tenha sido a maneira como se fez a desvalorização, a patuléia não merece que ela seja defendida com irracionalismos requentados.


Tudo é uma questão de clientela

Na semana passada circularam duas cartas de grão-tucanos. Uma, do presidente do Banco do Brasil, Andrea Calabi, apontando erros numa nota aqui publicada. Outra, do doutor Luiz Carlos Mendonça de Barros, contestando declarações do senador Jader Barbalho a respeito dos lucros da corretora Link com o câmbio de janeiro. Dois filhos de Mendonça são sócios da Link.
Referindo-se ao que aqui se publicou, Calabi informou: "É falsa a informação (...) de que o Banco do Brasil "perdeu algo como US$ 1,9 bilhão'. Também não é verdade, (...) que "o doutor Andrea Calabi torrou o equivalente ao patrimônio de J.P. Morgan."
O presidente do Banco do Brasil esclareceu que nas operações de câmbio "atendeu ordens de compra e venda de seus clientes". "Portanto", acrescenta Calabi, "eventuais perdas ou ganhos são de clientes, em nome dos quais o BB agiu." É certo que o BB não perdeu dinheiro de seus acionistas nas operações. Esteve errada a sugestão de que isso aconteceu.
Entre os dias 11 e 12 de janeiro, quando os afortunados compraram dólares a R$ 1,20, só houve um banco aceitando a aposta. Foi o do doutor Calabi, agindo em nome do Banco Central. Ambos levaram o dinheiro do erário para a fogueira. Dizer que Calabi queimou esse dinheiro é exagero. Seu papel foi o do operário que joga carvão na fornalha de uma siderúrgica. Em janeiro, queimou R$ 7,3 bilhões do BC no forno da BM&F.
Olhando-se a questão pelo lado da fornalha, Mendonça de Barros informa que "a empresa, desde a sua criação, nunca comprou um só contrato em seu nome, tendo sempre operado cumprindo ordens de seus clientes."
Fica assim a coisa:
De um lado estão o Banco Central e o Banco do Brasil. Ambos vivem do dinheiro público e existem para atender ao interesse público. Um, o BB, esteve quebrado. Sua capitalização custou ao erário R$ 8 bilhões (6 Morgans e mais uns trocados). O outro, o BC, torrou algo como US$ 40 bilhões (33 Morgans) defendendo uma moeda sobrevalorizada.
No outro lado está a banca privada, defendendo o interesse de seus acionistas. Em janeiro, 24 bancos ganharam R$ 10,1 bilhões à custa da Viúva. Para mudar de milionário, esse dinheiro está próximo do valor do patrimônio atual de toda a família Rockefeller.
Quando o dinheiro queima, tanto o Banco do Brasil quanto a Casa de Mendonça informam que cumpriram ordens de clientes (o que é verdade). O fato de haver um cliente escalado para perder, caiu na vala da irrelevância. É assim que funciona o mercado: ganha quem pode, perde quem não tem amigo.
Calabi esteve na ponta que perdeu e a Casa de Mendonça, na que ganhou. (Registre-se que as operações de câmbio da Link foram irrelevantes.) Ambos nada têm a ver com o que aconteceu. Era tudo coisa de "clientes".

Entrevista

Sidney Chalhoub (42 anos, professor de História da Universidade de Campinas, autor do livro "Cidade Febril - Cortiços e Epidemias na Corte Imperial")
- O governo federal lançou uma campanha de vacinação de idosos contra a gripe, tétano, difteria e pneumonia. No balanço, atingiram-se 6,6 milhões de idosos, superando a meta de 6 milhões, num universo de 9 milhões. Há informações de que muitos cidadãos preferiram não se vacinar, por medo de que o governo lhes quisesse fazer mal. De onde pode ter saído essa superstição?
- Não há dados que permitam dizer que os idosos que não se vacinaram ficaram com medo do governo. Isso tudo pode ter sido apenas um boato, ou a magnificação, pelo boato, de uns poucos casos reais. O medo da vacina é um fenômeno histórico. Em quase todas as culturas do século 19 houve a lenda de que os programas de vacinação eram um estratagema dos poderosos para envenenar os pobres. No Brasil houve alguma resistência à vacinação contra a varíola, iniciada por d. João 6º. Às vezes essa reação, oriunda das tradições religiosas, acaba, episodicamente, revelando-se correta. Dizia-se que a vacina da varíola propagava a sífilis. Era verdade, por causa da falta de assepsia nas inoculações. Temia-se que as vacinas inglesas propagassem epidemias. Em alguns casos, por deficiências nos testes de qualidade, isso aconteceu. Nos anos 60 deste século, houve casos de equipes de vacinação assassinadas no interior da África. Uma coisa é certa: a vacinação era a forma adequada de combate a varíola e, graças a ela, desde 1979 essa doença, que matou dezenas de milhões de seres humanos, extinguiu-se.
- A revolta da vacina, ocorrida no Rio em 1904 teve mais a ver com política ou com preconceito?
- Simplificando, ela foi consequencia do caráter compulsório da vacinação. Um ano antes, conseguiram-se excelentes resultados sem que a vacina fosse obrigatória. O governo republicano vinha fortalecendo os controles sociais sobre a população pobre do Rio de Janeiro. Tinha proibido a capoeira e derrubado os cortiços, mas em nenhum desses episódios houve revolta. Ela surgiu com a vacina obrigatória, a meu ver, porque feriu concepções religiosas. Grande parte da população de negros do Rio era composta por filhos ou netos de escravos nascidos na África. Os escravos desconfiavam que a vacina fosse um feitiço.
- O que é que pode ter acontecido agora?
- Não sei. É possível que tenha havido mais boato do que receio. Como não há o hábito da vacinação dos idosos, um avô é capaz de desconfiar da vacina que lhe querem dar, ao mesmo tempo que leva o neto para se vacinar contra a poliomielite. No caso da polio, a vacina já está incorporada à cultura do povo. Vamos admitir que tenha havido medo. É da tradição brasileira a desconfiança em relação à saúde pública. Ao lado disso, a discussão em torno da escassez de recursos para a saúde leva as pessoas a duvidar da qualidade dos serviços que vão receber. Neste governo, houve um caso de inoculação de vacinas de má qualidade. Ademais, nos últimos cinco anos, o discurso oficial tem sido consistentemente agressivo em relação aos aposentados, que são o setor da sociedade onde estão os idosos. As pessoas com mais de 65 anos foram colocadas na defensiva. Alguns idosos podem ter duvidado que o governo lhes pudesse oferecer algo de novo e de bom.

Registro
Quem avisa amigo é: o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, Michel Camdessus, é um discreto admirador da idéia de dolarizar a economia brasileira.




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