São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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ELIO GASPARI

Um país com 170 milhões de macroeconomistas

Estão querendo transformar o país dos 170 milhões de técnicos de futebol numa nação de 170 milhões de macroeconomistas. Havia bancos com papéis da Viúva que teoricamente valiam R$ 100, mas o mercado não os comprava por mais de R$ 96. Alguns deles contabilizaram-nos como se valessem R$ 96. Outros continuaram dizendo aos clientes de seus fundos que eles valiam R$ 100. Veio o Banco Central e antecipou a remarcação da papelada pelo seu valor de mercado. Alguns fundos ficaram como estavam e outros desvalorizaram-se. Seguiu-se uma discussão em torno das arcanas tessituras do BC. Não se trata disso, mas de registrar que alguns fundos estavam fazendo contas que poderiam prejudicar seus clientes. Os cotistas de um fundo do Banco Santander perderam 5,5%, já os de outro, do mesmo banco, saíram ilesos.
Micaram os clientes do Banco do Brasil, da Caixa Econômica e da Nossa Caixa. Comemoraram o BankBoston, o Citibank e o Opportunity. (Uma boa pergunta: por que micaram os três maiores bancos oficiais?) Em vez de esse ente misterioso chamado mercado pedir explicações ao Banco Central por ter feito o certo, quem tem que se explicar são os bancos cujos clientes perderam. Se um sujeito vai a uma agência bancária e pede R$ 100 por um cheque de R$ 98, o gerente chama o guarda. Pode-se dizer que o caso é bem mais complexo. É verdade, como é verdade que, quanto mais complexo o caso, mais os bancos ganham e os consumidores perdem. O Brasil de FFHH é o país onde os bancos não querem se submeter ao Código de Defesa do Consumidor. Dizem que vendem produtos (e não papéis), mas não admitem que seus clientes se denominem consumidores.
Seria muito bom se as discussões macroeconômicas fossem substituídas por debates microeconômicos, que têm a ver com a vida do cidadão e as tungas que lhe são impostas.
Os brasileiros pagam uma tarifa mais cara quando ligam de um telefone fixo para um celular. Os americanos pagam a mesma tarifa.
Entre 1993 e 2000 o preço em dólar da energia elétrica residencial subiu 28,53%. Em 2001 a patuléia tomou um racionamento e, por conta disso, mais tarifas. No ano que vem elas subirão entre 3% e 10% acima da inflação. Como se fosse pouco, o Senado acaba de aprovar uma taxa de iluminação pública. A proposta foi do PDT, que apóia Ciro Gomes, amparada pelo PSDB de José Serra e pelo PT de Lula. O mais divertido é que os moradores da periferia pagarão a mesma coisa que aqueles da avenida Atlântica.
A Viúva concede perto de R$ 500 milhões em isenções tributárias para escolas ditas filantrópicas em troca de bolsas de estudo para jovens carentes. Apesar das lorotas de sucessivos ministros da Previdência, até hoje o sistema de concessão dessas bolsas não foi regulamentado. Continua na mão dos donos das escolas, sem política pública nem fiscalização. Uma das últimas patranhas foi publicada aqui mesmo. O então ministro Roberto Brant (PFL) prometeu revolucionar esse microproblema e disse o seguinte: "Essa política resultará em 200 mil bolsas nas escolas superiores e em outras 100 mil nas escolas de ensino médio". Cadê?
Nem FFHH nem outro presidente vão resolver macroproblemas que resultam da confluência, em Brasília, das microtungas que a patuléia toma sem ser ouvida. Ou melhor, sendo ouvida só de quatro em quatro anos, quando o melhor negócio é oferecer-lhe macrosoluções.

Conta esburacada

Um curioso comparou as previsões que o Banco Central fez para a economia brasileira neste ano com o que a realidade sugere às vésperas do final do primeiro semestre:
1) Saldo de US$ 5 bilhões na balança comercial.
Até o final de maio, estava em US$ 1,9 bilhão. Seria melhor pensar em algo como US$ 4 bilhões até o final do ano.
2) US$ 21,4 bilhões de investimentos externos.
Até o final de abril, entraram US$ 7 bilhões. Admitindo que o recente piripaco afete esse fluxo, seria melhor pensar em US$ 18 bilhões.
3) O Banco Central estimou a rolagem integral dos US$ 30 bilhões da dívida externa. Talvez fosse melhor pensar na rolagem de apenas 85% desse ervanário.
4) O BC estimou que um item chamado "outras contas" fique neutro. Nele estão embutidas as remessas de brasileiros para o exterior. No anos passado elas ficaram em algo como US$ 4 bilhões. Rezando para santa Paulina, admita-se que sejam apenas de US$ 1 bilhão.
Ficando só nesses itens, ao final do ano faltarão cerca de US$ 10 bilhões (quantia que o FMI está se preparando para emprestar). Não vale dizer que a eleição presidencial tem a ver com a diferença entre as previsões do Banco Central e os temores do curioso. De todos os itens, a única coisa que se podia prever com 100% de certeza era a eleição. A menos que a ekipekonômica tenha resolvido fazer sua estimativas em cima da vitória do candidato do governo.

Bons ventos

A caciquia tucana informa que uma pesquisa feita há cerca de uma semana mostra José Serra com 23% das preferências.
Os alquimistas da candidatura tucana estão diante do dilema da garrafa de Chivas Regal. Ninguém sabe se ela está meio cheia ou meio vazia.
No caso de Serra, o problema está em descobrir se uma crise o derruba por governista ou se a mesma crise o levanta pelo medo da mudança oposicionista.

A Viúva planta soja, colhe cartão de crédito

Um bom assunto para os candidatos a presidente repassarem às suas assessorias. Quem sabe possa ajudá-los nos discursos que fazem pelo interior agrícola do país. Um levantamento da Confederação Nacional da Agricultura com 1591 produtores rurais, concluído em maio, informa que 96% dos entrevistados queixam-se do sistema de acesso a financiamentos que os bancos praticam. Outro, do ano passado, com 3.331 consultas, registra que 66% dos produtores disseram-se vítimas de exigências ilegais.
Sabendo que a Viúva gastou R$ 16,6 bilhões com a safra passada, os candidatos podem dizer o que pretendem fazer diante da suave extorsão que a banca (pública e privada) pratica contra os agricultores.
Numa ponta da corda ficam o governo e o BNDES, interessados em aumentar a produção, oferecendo empréstimos a juros anuais de 8,75%. Na outra, os produtores, querendo o dinheiro. No meio, a banca faz coisas do arco da velha.
Um exemplo: o BNDES abriu uma linha de crédito de R$ 200 milhões, chamada Prosolo. Destina-se a emprestar até R$ 80 mil com sete anos de prazo aos interessados em melhorar a qualidade de suas terras. Admita-se que Inácio José Gomes, um proprietário de 45 anos, vá ao banco buscar R$ 50 mil para incrementar sua soja. Os gerentes lhe pedem a cortesia da abertura de uma caderneta de poupança com R$ 1.000 de saldo médio e lhes vendem um contrato de seguro da operação (R$ 1.300, ao ano, em todos os exemplos), outro de vida (R$ 720), um plano de previdência (R$ 600) e um cartão de crédito (R$ 120).
Disso resulta que o BNDES soltou R$ 50 mil da Viúva a juros camaradas para financiar a soja e, durante o prazo do financiamento, o banco plantou negócios que lhe trazem perto de R$ 20 mil nos sete anos de vida do empréstimo. (Noves fora a caderneta de poupança.)
É certo que Inácio José Gomes ficou com dois seguros, um plano de previdência e um cartão de crédito, mas o que ele queria era colher soja. O BNDES faz seu papel e financia a lavoura, mas acaba plantando R$ 20 mil no latifúndio do papelório. Disso resulta que, dos R$ 200 milhões do Prosolo, os produtores agrícolas só buscaram R$ 51 milhões (26%). O resto do dinheiro encalhou.
Esse tipo de suave extorsão abate o crédito e inibe a lavoura, mas não é uma fatalidade brasileira, é apenas uma consequência do fato de os bancos (públicos e privados) fazerem o que bem entendem. O governo orgulha-se de ter oferecido quase R$ 2 bilhão em 14 programas de financiamento do BNDES. Deve passar pela vergonha de reconhecer que só conseguiu tomadores de R$ 245 milhões (13%). O mesmo BNDES tem outra linha de financiamento, denominada Moderfrota -nela está o financiamento de tratores. Dispunha de R$ 900 milhões e investiu R$ 1 bilhão (115%). Deu certo, entre outros motivos, porque os empréstimos são intermediados pelos bancos das montadoras, que não empurram badulaques financeiros à clientela.

A escravidão africana dos africanos

Está nas livrarias "A Escravidão Africana - Uma História de Suas Transformações", do historiador americano Paul Lovejoy. Levou 20 anos para ser publicado em Pindorama e certamente não foi lido por George Bush. Livraço, permitirá aos brasileiros conhecer a escravidão como atividade econômica dos povos africanos antes da chegada de Colombo às Antilhas e depois da abolição nos países americanos. Entre 1450 e o final do século 19, 12 milhões de africanos atravessaram o Atlântico. Antes que esse comércio encorpasse, o tráfico já deslocara entre 3,5 milhões e 10 milhões de pessoas dentro da África ou de lá para o mundo islâmico. Depois de 1600 foram outros 10 milhões.
Mesmo tendo sido muito bem traduzido por Regina Behring e Luiz Guilherme Chaves, é obra de acadêmico. Graça, não tem. O livro ajuda a ver o engodo em que entraram as pessoas que viram um gesto libertário na conversão do boxeador Cassius Clay, mudando seu nome para Muhammad Ali. Se Cassius vivesse na África na primeira metade do século 19, no tempo de seu ídolo, teria sido um de seus 30 mil escravos. Ele dizia coisas assim: "O objetivo de todos os nossos esforços e despesas é conseguir negros". Lovejoy ajuda a refrescar a memória de quem vê em Osama bin Laden um prolongamento das virtudes da diversificação. Ensina que a escravidão africana foi, em certa época, sobretudo uma atividade do islã. Tanto vendendo escravos como governando estados escravistas. Aquele libertário Lawrence Olivier no papel do Mahdi do filme Kartoum (com Charlton Heston no papel do general inglês Gordon) é ilusão de ótica. O Mahdi encarnava o nacionalismo islâmico (escravocrata) e o general, o imperialismo (às vezes abolicionista). É esse um dos pontos centrais do livro de Lovejoy. Ele não se diverte enfiando pregos na cabeça das pessoas politicamente corretas, mas mostra a essência escravista das sociedades e economias africanas. O tráfico transatlântico foi um dos seus capítulos, mas não o único.
Lendo-o, deixa-se de dizer que o Brasil e Cuba foram os últimos países a abolir a escravidão. Foram apenas os últimos países não-africanos a fazê-lo. Em 1903 havia cerca de 1 milhão de escravos na região do Sudão. Lá os ingleses só impuseram uma lei de ventre livre em 1901. Serra Leoa aboliu a escravidão em 1928. A Etiópia, em 1942. Na Arábia Saudita, velha compradora de escravos africanos, a escravidão acabou em 1962.

Bush estava certo

Causou grande surpresa em Pindorama o fato de o presidente George Bush não saber que o Brasil tem negros. Dando o desconto de que ele já chamou as pessoas nascidas na Grécia de grécias e relevando sua educação precária, ele tem bons motivos para perguntar o que perguntou.
Quando Bush exibiu sua curiosidade asnática a FFHH, tinha ao lado a assessora de segurança nacional Condoleezza Rice. Ela é negra e nasceu no Sul ao tempo das lutas contra o racismo. Um menino com quem brincava na infância morreu na explosão de uma bomba em Birmingham. Em vez dela, poderia estar na sala o Secretário de Estado Colin Powell. Também é negro, nascido numa vizinhança de classe média (hoje degradada) do Bronx. Bush pode ser ignorante, mas não é cego. Como aluno de Yale, governador do Texas e presidente dos Estados Unidos, deve ter visto pelo menos 500 brasileiros (dez a cada ano de sua idade adulta). Nunca viu um brasileiro negro, assim como nenhum brasileiro já viu um garçom negro em restaurantes caros.
Se FFHH estivesse no Salão Oval da Casa Branca acompanhado por todo o seu ministério e todos os embaixadores do Brasil no exterior, a única negra da cena continuaria sendo Condoleezza Rice.
Como ficaria a piada se, ao saber que o Brasil tem negros, o presidente dos Estados Unidos perguntasse: "Ué, como é que eu nunca vi um?".

Registro da Vale

Para o registro da história da privataria:
Em 1997, quando o empresário Benjamin Steinbruch formou o consórcio que arrematou a Vale do Rio Doce, o governo sabia que, se ele fosse ao leilão, haveria de sair com a empresa debaixo do braço.
Ao contrário do que viria a ocorrer com a venda das teles, o leilão da Vale não tinha envelopes, mas lances, como os de quermesse.
É falsa a história segundo a qual Steinbruch só foi abençoado para dar uma impressão de disputa. A carta da brincadeirinha nunca esteve no baralho.



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