São Paulo, quarta-feira, 09 de agosto de 2006

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ELIO GASPARI

Grande retrato do rei da privataria

Percival Farquhar foi o dono do Brasil. Com 40 anos de atraso, sua biografia está nas livrarias

FINALMENTE FOI editada no Brasil uma jóia da história da privataria. É "Farquhar, o último titã", de Charles Gauld. Percival Farquhar (1864-1953) foi o maior empresário de serviços públicos de Pindorama.
Em cacife de hoje, seria um grande acionista das maiores empresas geradoras e distribuidoras de energia, das telefônicas e dos metrôs do Rio e de São Paulo. Mais os portos do Rio e do Pará, a Vale do Rio Doce e a Acesita. Foi dono do Amapá, mas devolveu-o. Era um quacre gélido e charmeur cosmopolita de muito estilo: viveu até 1952 na cobertura do edifício Biarritz (aquele dos toldos laranja, na praia do Flamengo). Na minissérie "Mad Maria", foi o vilão encarnado por Tony Ramos. Nasceu milionário e tornou-se um dos maiores empresários do mundo. Começou em 1898, arrematando os bondes de Havana. Em 1912, encarnava a globalização da belle époque latino-americana. Em dinheiro de hoje, o investimento das empresas que criou na região chegava perto dos 50 bilhões de dólares.
Fez maus negócios no Sul e na Amazônia, mas faliu em 1913 porque exagerou na especulação com o papelório. Quebrar faz parte da vida de qualquer empresário. Tentar resolver sua vida com o governo brasileiro é um suplício que o inferno reserva aos piores pecadores. Farquhar passou 40 anos nesse tormento.
"O último titã" não é um livro divertido, mas tem história. Charles Gauld, seu autor, foi um professor que morou no Rio a partir de 1946, quando começou sua convivência com o magnata. Publicada nos Estados Unidos em 1964, a obra desapareceu. Os amigos de Farquhar preferiram esquecê-la. Não foi traduzida nem lida por autores que deveriam ter corrido atrás. A narrativa de Gauld mostra alguns fios da teia de interesses montada no andar de cima do início do século 20. Doutores que viraram nome de rua, escritórios de advocacia e poderosos de todas as ocasiões compartilham atrevidas notas de fim de capítulo.
O livro expõe as idiossincrasias de Farquhar (e de Gauld). Ambos batiam duro nos latinos e nos brasileiros. O titã diz coisas assim:
- "Os brasileiros. Assim como todos os povos tropicais, consideravam natural roubar a nação, ignorar seu bem-estar e arruinar suas florestas e seu solo."
- "Se você descobrir o que fazer com a Amazônia, me conte."
- Salvador "é a cidade mais africana e corrupta das Américas".
Na visão de Gauld, todos os adversários de Farquhar são desprezíveis. Candido Gaffrée e Eduardo Guinle Jr. combateram-no, então Eduardo seria filho de Gaffrée. Pandiá Calógeras não o atendeu, porque aceitava propinas. Seus defensores são santos. Assis Chateaubriand, comprou "O Jornal" com dinheiro dele, mas tratava-se de pagamento de honorários de advogado. Segundo Gauld, Farquhar não tocava em jabaculê. Deixava o serviço para os advogados.
É no jeitão de libelo colonialista que está a singularidade do livro. Nada do que Farquhar achava diferia muito do que pensava (e pensa) um bom pedaço do andar de cima nacional. O processo de venda de concessões do início do século 20 parece-se bastante com as Parcerias Público-Privadas que estão no cofre do BNDES. O retrato do investidor internacional do tipo "amigo-do-Brasil" é velho, fiel e amargamente atual. Uma coisa ninguém tira do titã: no choque entre o progresso e o atraso, Farquhar passou a vida ao lado do progresso.


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