São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

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ARTIGO

O jargão vazio e a ginástica labial

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

O jargão político de esquerda tem algumas metáforas clássicas -e que andam precisando de urgente descanso. Uma delas é a de que sindicatos não devem ser "correia de transmissão" do partido, assim como o partido não deve ser "correia de transmissão" do governo.
Esta última frase foi pronunciada por Raul Pont, candidato oposicionista à presidência do PT, numa entrevista ao site do próprio partido. Talvez resuma as principais dificuldades de sua candidatura. Eis como ele prossegue o raciocínio: "As instâncias partidárias têm que ser ouvidas e têm que opinar sobre as ações de governo, apresentando propostas, projetos. E é esse papel que nos propomos a resgatar e construir".
Nada mais correto, em tese, do que imaginar um partido propositivo, empenhado em irrigar a máquina governamental com as idéias, reivindicações e movimentos da sociedade civil. Toda a crise do PT e do governo Lula nascem, entretanto, de uma situação completamente distinta. Do mesmo modo que no governo FHC, o problema está em conquistar uma "base parlamentar", que aprove as emendas constitucionais, projetos de lei e medidas provisórias originadas no Executivo. Daí as alianças espúrias, os "mensalões", os acordos fisiológicos, o loteamento dos cargos públicos.
O modelo de um partido "propositivo" talvez venha de outras épocas e de outros regimes políticos: em especial, o parlamentarismo europeu de fins do século 19, quando o Legislativo era a origem do poder governamental. Ao longo do século 20, o predomínio do Executivo, tanto nas democracias ocidentais como nos regimes do Leste, foi tornando cada vez mais vazio, utópico, ou inviável, o refrão de que o partido não pode ser "correia de transmissão" do governo.
Para Ricardo Berzoini, candidato situacionista, é disso mesmo que se trata: o principal compromisso do PT é a defesa do governo Lula, diante daquilo que todos -até mesmo Raul Pont- identificam como uma investida da direita, das elites, da mídia, contra as conquistas obtidas até aqui. "O PT deve fazer a defesa do governo Lula sem tergiversar", declara Berzoini ao site petista. Sem dúvida, acrescenta ele, "isso não significa que o partido não possa fazer críticas pontuais a certas políticas". Mas a frase parece pura ginástica labial: não se pode perder de vista "que o governo Lula é o governo de nosso partido". Investigações, apurações, etc., têm assim um limite bastante rígido, para dizer o menos.
Os propósitos de Berzoini são claríssimos, afinal. Já o lema da "refundação do partido", adotado por Raul Pont, envolve muitas questões ao mesmo tempo. Seu primeiro aspecto é o de responder a uma crise de valores éticos, defendendo a punição urgente dos envolvidos no escândalo. Mas "refundar" exigiria mais do que isso: no mínimo, tem implicações ideológicas, organizacionais e táticas. Sob um mesmo lema, caberia então, no mínimo: recuperar a perspectiva do socialismo, redemocratizar os mecanismos de decisão interna do partido, rever a tática de alianças do governo federal, propor mudanças na política econômica e no ministério. Será possível fazer tudo isso, e continuar apoiando Lula?
E o que o governo Lula teria a ganhar com um partido de tal pureza? Provavelmente nada, a esta altura. Se o PT fosse de verdade um partido de massas, enraizado na sociedade civil, a força de suas mobilizações seria a verdadeira "base de sustentação" de Lula, e este seria refém de movimentos como o defendido pela oposição. Decidiu-se entretanto, como nota Raul Pont lucidamente, transformar o PT num partido "eleitoral", isto é, numa máquina de ganhar eleições, não num instrumento de organização da sociedade.
Qual o "poder de fogo", por assim dizer, com que a oposição petista conta no momento para alterar os rumos do governo? A convicção de seus adeptos, o prestígio de seus intelectuais, o inextinguível apelo utópico de suas bandeiras. É uma força ética e ideológica -coisa boa de se cultivar, mas que em geral combina melhor com quem está fora do poder. As atuais instituições do Estado brasileiro impõem uma prática política bem diversa, fundada no oportunismo, na mentira, no descompromisso doutrinário e moral -e foi este o jogo que o governo Lula se dispôs a jogar, desde o seu primeiro momento.

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