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ARTIGO
O jargão vazio e a ginástica labial
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
O jargão político de esquerda tem algumas metáforas clássicas -e que andam
precisando de urgente descanso.
Uma delas é a de que sindicatos
não devem ser "correia de transmissão" do partido, assim como o
partido não deve ser "correia de
transmissão" do governo.
Esta última frase foi pronunciada por Raul Pont, candidato oposicionista à presidência do PT,
numa entrevista ao site do próprio partido. Talvez resuma as
principais dificuldades de sua
candidatura. Eis como ele prossegue o raciocínio: "As instâncias
partidárias têm que ser ouvidas e
têm que opinar sobre as ações de
governo, apresentando propostas,
projetos. E é esse papel que nos
propomos a resgatar e construir".
Nada mais correto, em tese, do
que imaginar um partido propositivo, empenhado em irrigar a
máquina governamental com as
idéias, reivindicações e movimentos da sociedade civil. Toda a crise
do PT e do governo Lula nascem,
entretanto, de uma situação completamente distinta. Do mesmo
modo que no governo FHC, o problema está em conquistar uma
"base parlamentar", que aprove
as emendas constitucionais, projetos de lei e medidas provisórias
originadas no Executivo. Daí as
alianças espúrias, os "mensalões",
os acordos fisiológicos, o loteamento dos cargos públicos.
O modelo de um partido "propositivo" talvez venha de outras
épocas e de outros regimes políticos: em especial, o parlamentarismo europeu de fins do século 19,
quando o Legislativo era a origem do poder governamental. Ao
longo do século 20, o predomínio
do Executivo, tanto nas democracias ocidentais como nos regimes
do Leste, foi tornando cada vez
mais vazio, utópico, ou inviável, o
refrão de que o partido não pode
ser "correia de transmissão" do
governo.
Para Ricardo Berzoini, candidato situacionista, é disso mesmo
que se trata: o principal compromisso do PT é a defesa do governo
Lula, diante daquilo que todos
-até mesmo Raul Pont- identificam como uma investida da direita, das elites, da mídia, contra
as conquistas obtidas até aqui. "O
PT deve fazer a defesa do governo
Lula sem tergiversar", declara
Berzoini ao site petista. Sem dúvida, acrescenta ele, "isso não significa que o partido não possa fazer
críticas pontuais a certas políticas". Mas a frase parece pura ginástica labial: não se pode perder
de vista "que o governo Lula é o
governo de nosso partido". Investigações, apurações, etc., têm assim um limite bastante rígido, para dizer o menos.
Os propósitos de Berzoini são
claríssimos, afinal. Já o lema da
"refundação do partido", adotado por Raul Pont, envolve muitas
questões ao mesmo tempo. Seu
primeiro aspecto é o de responder
a uma crise de valores éticos, defendendo a punição urgente dos
envolvidos no escândalo. Mas
"refundar" exigiria mais do que
isso: no mínimo, tem implicações
ideológicas, organizacionais e táticas. Sob um mesmo lema, caberia então, no mínimo: recuperar a
perspectiva do socialismo, redemocratizar os mecanismos de decisão interna do partido, rever a
tática de alianças do governo federal, propor mudanças na política econômica e no ministério. Será possível fazer tudo isso, e continuar apoiando Lula?
E o que o governo Lula teria a
ganhar com um partido de tal pureza? Provavelmente nada, a esta
altura. Se o PT fosse de verdade
um partido de massas, enraizado
na sociedade civil, a força de suas
mobilizações seria a verdadeira
"base de sustentação" de Lula, e
este seria refém de movimentos
como o defendido pela oposição.
Decidiu-se entretanto, como nota
Raul Pont lucidamente, transformar o PT num partido "eleitoral", isto é, numa máquina de ganhar eleições, não num instrumento de organização da sociedade.
Qual o "poder de fogo", por assim dizer, com que a oposição petista conta no momento para alterar os rumos do governo? A convicção de seus adeptos, o prestígio
de seus intelectuais, o inextinguível apelo utópico de suas bandeiras. É uma força ética e ideológica
-coisa boa de se cultivar, mas
que em geral combina melhor
com quem está fora do poder. As
atuais instituições do Estado brasileiro impõem uma prática política bem diversa, fundada no
oportunismo, na mentira, no descompromisso doutrinário e moral
-e foi este o jogo que o governo
Lula se dispôs a jogar, desde o seu
primeiro momento.
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