São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NOVO GOVERNO

Economista Jacques Attali, conselheiro especial de Mitterrand, vê torcida pelo fracasso da América Latina

Temor a Lula passará, diz intelectual francês

GEORGIA NASCIMENTO
DA REPORTAGEM LOCAL

O economista francês Jacques Attali, 59, diz que a economia do Brasil está bem, e que, assim como a esquerda francesa foi temida internacionalmente ao assumir o poder, um eventual governo Lula irá superar com êxito essa fase.
Para isso, Attali acha que o novo governo deve manter a economia aberta, implementar políticas de redução da pobreza e, principalmente, convencer os empresários brasileiros a investirem no Brasil: "Se eles investirem, os estrangeiros também investirão", diz.
Attali também lamenta o que ele chama de "coma" do Mercosul e diz que, infelizmente, "há muitas pessoas interessadas no fracasso da América Latina".
Conselheiro especial do presidente François Mitterrand de 1981 a 1991, fundador e primeiro presidente do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, Attali é presidente de uma empresa de consultoria de investimentos baseada em Paris e da ONG (organização não-governamental) PlaNet Finance, que atua com a promoção do microcrédito na Ásia e na África e acaba de inaugurar, em São Paulo, seu primeiro escritório na América Latina.
O economista também é autor de 23 livros, entre ensaios, romances e peças de teatro. A seguir, os principais trechos da entrevista.
 

Folha - Alguns especialistas dizem que a eleição de Lula significa uma ruptura com o Consenso de Washington [receituário neoliberal que prega austeridade fiscal, privatização e livre mercado], pela escolha de um presidente que se diz uma alternativa a esse modelo de crescimento. Mas, durante a campanha, Lula prometeu honrar os compromissos internacionais assumidos, manter o superávit fiscal e ao mesmo tempo aumentar o gasto com programas sociais. O sr. acha que isso será possível?
Jacques Attali -
É muito possível, porque o Brasil está em boa forma economicamente. A balança de pagamentos está melhorando, o potencial de crescimento é bom e há recursos para fazer algumas coisas. O que é engraçado com o Consenso de Washington é que é um consenso de políticas que não são seguidas pelos Estados Unidos. Porque eles têm um déficit enorme e aconselham os outros a fazerem coisas que eles não fazem. Não há razões para a América Latina ser a única parte do mundo sem crescimento. A Índia deve crescer 6% ao ano, a China, 8%, a África, 4% e a Europa, 2,2%. A única maneira de o Brasil não crescer é se as fronteiras forem fechadas e os empresários brasileiros tirarem o dinheiro do país.

Folha - Apesar de contar com um índice de popularidade relativamente bom, a despeito das recentes crises financeiras sofridas pelo país, o presidente Fernando Henrique Cardoso não conseguiu eleger seu sucessor. Se o Brasil está em boa forma, como o sr. explica esse fenômeno?
Attali -
As pessoas não votam somente por causa de um programa, mas sim em uma personalidade. Nós vimos o mesmo na França meses atrás. Elas sabem que os programas mudam, que se ajustam às circunstâncias, e elas querem ter uma visão do futuro.

Folha - O que o sr. acha do ceticismo de alguns de que um governo de esquerda pode ser bem-sucedido no Brasil?
Attali -
Eu não vejo nenhuma razão para que o Lula e um governo socialista democrático não tenha sucesso. Nós temos na França há muito tempo presidentes vindos da esquerda e não assustamos o mundo. Isso aconteceu somente no começo. É exatamente o mesmo tipo de mudança que tivemos na França 20 anos atrás e nós tivemos êxito.

Folha - E o que os investidores internacionais esperam do Brasil?
Attali -
A pergunta da comunidade internacional será se o Lula manterá a economia aberta. E a resposta é sim. Em segundo, eles irão querer saber o que fará a comunidade de empresários brasileiros. Não há como pedir que os investidores estrangeiros invistam no país se os empresários brasileiros não investirem. Se os banqueiros e industriais brasileiros mantiverem a confiança no Brasil, se eles continuarem investindo, os estrangeiros também investirão. Mas, se os brasileiros tirarem o dinheiro do país e pararem de investir, por que os europeus e americanos seriam mais brasileiros que os próprios brasileiros?

Folha - E qual seria a solução para a Argentina?
Attali -
Eles devem reabrir a economia para trazer de volta o dinheiro argentino. É a única coisa a se fazer. Tentar trazer o dinheiro dos próprios argentinos de volta ao país. É a mesma situação em todos os lugares: não há como atrair investimentos para um país se os próprios cidadãos não investirem.

Folha - E há alguma outra saída para a Argentina além de um novo acordo com o FMI?
Attali -
Não. Mas o FMI está começando a mudar seus critérios, a ser um pouco mais socialmente responsável, menos ortodoxo. Mas deve haver essa mudança na natureza do Consenso de Washington, deve ser um consenso global, mais socialmente orientado. É o início da mudança.

Folha - E dentro desse contexto, quais são as perspectivas para o Mercosul?
Attali -
O Mercosul parece que está morto, ou quase, infelizmente. E é realmente uma pena. Tomara que seja possível que o Brasil e a Argentina voltem para a mesa de negociação para mantê-lo vivo. Ele não está morto, está em coma. Mas eu tenho medo que seja difícil tirá-lo do coma. O problema da América Latina é que há muitas pessoas no mundo interessadas no fracasso da América Latina.

Folha - Que pessoas?
Attali -
Os concorrentes. Eles não querem ver a América Latina ter sucesso. Eles estão em todo o lugar. Eu acho que o Mercosul deve ser revisto, porque ele é absolutamente vital para a América Latina ter sucesso e a Europa está pronta para ajudar. Senão, o futuro será uma extensão do Nafta para o Brasil. Esse será o próximo passo. Cabe ao Brasil decidir.

Folha - Mas quem são esses concorrentes?
Attali -
Eu não quero criar incidentes diplomáticos.

Folha - Mas o sr. acredita que o Brasil está no caminho certo?
Attali -
O Brasil está dando um sinal ao mundo, elegendo Lula, de que a pobreza é grande, e que o seu combate deve ser a prioridade dos governos do mundo. Mas não se acaba com a pobreza em um minuto. É uma longa luta. Não é suficiente distribuir leite para crianças para conceder a elas uma vida decente. É uma questão de criar instituições sociais para prover saúde, educação e recursos financeiros para que as pessoas criem seus trabalhos. Se o Brasil acha que isso pode ser feito em um dia, isso vai falhar. Mas claramente o Brasil deu um sinal de que a pobreza é o principal inimigo da humanidade.

Folha - E quais devem ser as primeiras medidas do novo presidente da República?
Attali -
Eu acho que ele deve fazer um programa contra a fome, explicando que ele não pode ser realizado em um dia, colocando as coisas em perspectiva e explicando que o problema é tão grande que demandará muito tempo. Em segundo lugar, dizer que o Brasil continuará sendo uma economia aberta, orientada ao mercado. Em terceiro, colocar profissionais para os cargos-chave.

Folha - O combate à violência foi um tema muito debatido nessas eleições. O sr. diz que a guerra contra a violência está progredindo para a guerra contra a pobreza. O sr. acha que o novo governo deveria voltar-se mais para programas de redução da pobreza em vez de políticas de repressão?
Attali -
Deve-se fazer ambos. No curto prazo deve-se cuidar da segurança e no longo prazo não há solução sem a redução das desigualdades. O centro do problema está no desemprego e na falta de programas sociais.
É por isso que o microcrédito é uma das partes centrais dos programas sociais contra a violência. Não somente no Brasil, mas também em países muçulmanos, onde ele é parte da luta contra o terrorismo, por prover uma maneira das pessoas desenvolverem oportunidades. Não é apenas caridade, mas mostrar que elas são boas para alguma coisa e podem usar suas potencialidades.

Folha - Recentemente, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) disse que gostaria de distribuir mais crédito aos pobres, mas que há poucas instituições capazes de gerenciar esses recursos nas comunidades carentes. O sr. acha que essa situação é real e que políticas deveriam ser adotadas?
Attali -
É exatamente por isso que estamos criando um escritório aqui no Brasil. O país tem uma situação muito estranha. Cinquenta milhões de pessoas vivendo na linha da pobreza, ou abaixo dela, e somente 150 mil pessoas beneficiando-se do microcrédito. Certamente poderíamos encontrar no Brasil dez milhões de microempresários, e, se tivéssemos esse número, mais as suas famílias, teríamos 40 milhões de pessoas sendo beneficiadas e sairíamos da pobreza. O que o BNDES está falando é verdade. Há realmente uma falta enorme de instituições de microfinanças no Brasil. Mas podemos dar condições para que essas instituições cresçam e se tornem auto-sustentáveis, para que se consolidem e tenham condições de beneficiar milhões de pessoas. E essa é a nossa escolha.

Folha - O sr. acredita que o microcrédito deve ser uma iniciativa exclusiva de ONGs em parceria com o setor privado ou uma política implementada por instituições governamentais?
Attali -
Tudo é possível. Mas o governo ser dono das instituições de microcrédito não funciona. É melhor quando essas instituições são independentes do governo, porque senão há uma tendência de conceder crédito segundo interesses, para amigos, em troca de favores políticos. Mas o governo tem um papel muito importante a desempenhar, que é o de prover recursos para as instituições em termos de treinamento e capacitação, além de legislação e marketing. No México, por exemplo, há uma grande campanha na televisão para divulgar que o microcrédito existe e que as pessoas podem encontrar recursos para a execução de projetos.

Folha - E quais outras políticas o sr. acha que o governo deveria adotar para a diminuição da disparidade de renda?
Attali -
Há quatro elementos. Um é assegurar a democracia, que é um dos fatores-chave para o combate da pobreza, porque ela significa transparência, saber quem é rico e por quê. O segundo é a segurança, que significa lutar contra crimes econômicos, drogas e elementos que distorcem as estruturas econômicas. O terceiro é educação. E o quarto é o microcrédito, para que as pessoas criem seus próprios trabalhos. Eu não acredito em caridade, em assistência a pessoas abaixo da linha da pobreza somente por meio de subsídios. O que acho sustentável são investimentos sociais e também dar recursos para que elas tomem suas próprias iniciativas.

Folha - Uma das condições para o desenvolvimento do Brasil é o aumento de suas exportações. Mas o país tem enfrentado uma série de dificuldades, principalmente devido às barreiras protecionistas impostas pelos países mais ricos. Qual deve ser a posição do novo presidente em relação ao futuro das relações entre o Brasil e a Europa?
Attali -
Isso será parte das discussões globais que o novo governo do Brasil deve ter com a União Européia. Há motivos para o Brasil pedir mais generosidade aos países europeus na abertura de seus mercados, há justificativas para o país explicar para a Europa que nós não podemos pedir ao Brasil para terem uma economia aberta se não temos uma economia aberta na Europa. É claro que o Brasil merece um acesso melhor aos mercados abertos, para as indústrias e agricultura. Mas com a expansão da União Européia, com a inclusão dos países do leste, isso também não será uma negociação fácil.

Folha - O sr., como um dos idealizadores da União Européia, ao ver a atual unificação tem a sensação de que ficou como imaginava?
Attali -
Sim. Eu fui um dos primeiros a propor a extensão da União Européia para o leste, e foi por isso que eu criei o Banco Europeu em Londres. Eu acho que a Rússia deve se tornar um membro da União Européia, no longo prazo. Há dificuldades para organizar o governo europeu, um governo federal. Mas nós vamos fazê-lo e com sucesso. A União Européia não será o Mercosul.



Texto Anterior: Programas Sociais: Lista não contempla 18,7 milhões de pobres
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.