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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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ELIO GASPARI

Um retrato de SP e seus dois andares

O Instituto Futuro Brasil divulga nesta semana os números completos de uma enorme pesquisa feita na cidade de São Paulo para ver direito o problema da violência. Num trabalho sem precedentes, estudaram-se 5.000 domicílios, cobrindo cerca de 20 mil pessoas.
Está dura a vida na cidade. Só 11% dos entrevistados acham que se pode confiar nos outros, e 89% julgam mais prudente ficar sempre com um pé atrás. Nível de Colômbia. Na Bósnia, 27% das pessoas confiam no gênero humano. Nos Estados Unidos, 42,5%. Estatisticamente, um em cada dois paulistanos sofrerá uma violência durante sua vida adulta. Dois em cada dez sofreram algum tipo de violência ou de ilegalidade nos últimos 12 meses.
As estatísticas de roubos de carros e de agressões físicas de São Paulo estão piores que as colombianas, e o cidadão quer distância da polícia. Os indicadores de agressões físicas são o triplo das americanas, mas as notificações à policia equivalem à terça parte. O paulistano apanha calado. Só um em cada dois assaltados, inclusive com arma de fogo, vai ao distrito contar o que lhe sucedeu.
Apesar desse pé atrás, de cada dez pessoas que pediram ajuda à polícia, oito disseram ter recebido um atendimento decente ou até acima de suas expectativas.
Um em cada dois jovens de 16 a 25 anos já foi revistado. Dois em cada dez foram desrespeitados, e oito em cada cem foram agredidos ou maltratados pela polícia. Isso para a população em geral. Quebrando-se os números pela cor, a coisa fica feia: um negro tem quase duas vezes mais chances de ser revistado, ameaçado ou desrespeitado pela polícia. Suas chances de ser agredido ou maltratado são três vezes maiores que as dos brancos.
A idéia e o patrocínio dessa pesquisa foram de Claudio Haddad, presidente do Instituto Futuro Brasil. Na opinião dele, ninguém jamais saiu de uma encalacrada como a violência de São Paulo sem pelo menos saber os números do problema. Ele foi atrás, e a pesquisa revelou cenas surpreendentes.
Os paulistanos estão equipados. Quase todos os domicílios têm TV em cores e geladeira (98% e 97%, respectivamente). Metade tem freezer (54,8%), automóvel (49,7%) e cartão de crédito (55%). De cada dez, seis têm algum tipo de plano de saúde.
De cada cem moradores de São Paulo, 15 moram em favelas e 44% vivem perto de uma favela. Isso todo mundo sabe. Agora vê-se que 78% dos favelados moram em imóvel próprio, mais da metade dos quais sem escritura. Alô, alô, doutor Olívio Dutra, ministro das Cidades, 78% dos moradores de favelas vivem em casa própria, mas só 14% conseguiram escritura. Numa favela, a percentagem de domicílios alugados é de 7%. Num condomínio blindado, a taxa é de 27%.
No andar de baixo há muita polícia para prender e maltratar os cidadãos, mas há pouca lei para lhes garantir a propriedade de suas casas. No de cima, pensou-se que, botando bastante polícia para vigiar a turma de baixo, o patrimônio estaria garantido. Deu errado.

Alegria da banca
Entre janeiro e setembro, o governo do PT-Federal pagou R$ 87,1 bilhões de juros, ou 7,8% do PIB. Pela primeira vez na história, a Viúva gastou mais com juros do que com os benefícios previdenciários (R$ 71,1 bilhões, ou 6,3% do PIB).
O pagamento dos juros foi equivalente a 123% do que se gastou com a previdência pública. Quando um previteca de Brasília resolve humilhar os aposentados com mais de 90 anos, obrigando-os a uma chamada de penitenciária, pensa-se que foi erro. Não. O governo de Lula estuda isenção de CPMF para quem vive de juros e um refresco no Imposto de Renda dos metalúrgicos anistiados de São Bernardo. Para os demais, cadastro, fila e taxação.

A ONG do Zé
A bancada do governo no Senado está passando o rolo compressor na oposição até quando ela pede dados para saber se o plenário vai tomar decisões que aumentam a carga tributária. Até aí, nada de mais, porque manda quem tem voto, e obedece quem tem juízo.
A motoniveladora dirigida pelo PT formou uma interessante tropa de choque. Ela é composta pelos seguintes senadores:
- Fernando Bezerra, ministro da Integração de FFHH;
- Renan Calheiros, líder do governo Collor na Câmara e ministro da Justiça de FFHH;
- Ney Suassuna, ministro da Integração de FFHH;
- Romero Jucá, líder do PSDB de FFHHH no Senado.
Segundo o que o PT dizia deles, é possível que tenham formado a primeira ONG governamental.
Numa situação dessas, é compreensível que, pela primeira vez em quase 20 anos, o Planalto esteja interessado em atrapalhar a reeleição do senador Eduardo Suplicy.

O povo entrou na história
Reuniu-se na semana passada a comissão de alto nível designada por Lula para localizar os restos dos guerrilheiros mortos no Araguaia entre 1973 e 1974. Perdeu seu tempo. Os comandantes militares informam que nada se sabe porque nada se lembra. No ano que vem, Lula e o comissário José Dirceu podem comemorar com uma pelada no Torto os 30 anos do final das ações militares. Enquanto isso, numa lição de que se pode esmagar guerrilheiros e abafar as vozes dos mortos, mas não se apaga o passado, está para sair nos Estados Unidos um belo livro. Chama-se "Soldiers of the Patria".
É uma história do Exército brasileiro entre 1889 e 1937. Foi escrito pelo professor Frank McCann, da Universidade de New Hampshire, autor de um estudo clássico da aliança militar Brasil-Estados Unidos no tempo da Segunda Guerra.
McCann conta a história do Exército junto com a do povo brasileiro. Sua narrativa de Canudos é sucinta, mas cortante na análise do desastre militar e do despreparo dos generais da época. A incapacidade dos comandantes influenciaria uma ânsia de profissionalização na oficialidade. Durante a guerra, os generais azucrinavam jornalistas que falavam na degola dos jagunços. Mesmo depois, parecia falta de educação falar na matança. Pensava-se que, com isso, protegia-se o Exército. Coisa nenhuma, protegiam-se comandantes ocasionais e ineptos. No contrapeso dessa tolice, ofendia-se a tropa que lutou, ou pensava que lutava, na defesa da República. McCann aponta para uma tristeza: "Não há uma só cidade brasileira onde exista um monumento aos soldados que morreram ou foram feridos em Canudos, apesar do fato de terem tombado 5.000 homens em menos de um ano".
McCann brilha na narrativa do Contestado, a revolta que convulsionou o noroeste de Santa Catarina no início do século 20. Eram posseiros e trabalhadores desempregados. Faltou-lhes um Euclides da Cunha, e hoje pouco se fala dessa rebelião. O professor dá duas páginas ao fantástico capitão João Teixeira de Matos Costa, um veterano de Canudos que tentou pacificar a região e foi massacrado pelos insurretos. (Numa história do Exército, editada em 1972, Matos Costa ganha um parágrafo no qual sua iniciativa pacificadora mal é percebida.)
Estudando o braço forte do Estado, McCann lembra que a famosa habilidade brasileira para a conciliação parece limitada às disputas no andar de cima. Com o de baixo, a margem de manobra é bem menor. A certa altura, referindo-se à carreira do marechal Hermes da Fonseca, ele lembra: "Como os demais oficiais do século 20, com exceção daqueles que serviram na Segunda Guerra, sua experiência de combate foi adquirida contra brasileiros".
Tomara que algum editor brasileiro se interesse pela edição do livro. Ele poderá trazer boas discussões. McCann acha que não se deve falar numa "Revolução de 30", pois o que houve em 1930 revolução não foi.

Curso Madame Natasha de piano e português
Madame Natasha tem horror a música. Ela cuida da miscigenação do idioma português, faz alguns serviços extras na defesa do inglês e patrulha as pequenas e imperceptíveis grosserias que os homens praticam com as mulheres bem-sucedidas. Ela concedeu diversas bolsas de estudo ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, e ao doutor Joaquim Levy, secretário do Tesouro.
Em ocasiões diferentes, Palocci e Levy chamaram a vice-diretora do Fundo Monetário Internacional, Anne Krueger, de "Mrs. Krueger".
Ganharam três bolsas cada um. A primeira por falta de modos com a língua portuguesa. Se estão falando para uma platéia brasileira, podem chamá-la de "sra. Krueger", "dona Krueger" ou até de "sinhá Krueger". A língua oficial do ministério da Fazenda ainda é o português.
Admitindo-se que seja o inglês, Palocci e Levy podem fazer um curso de boas maneiras para não chamar de "Mrs." uma mulher solteira. Mrs. Krueger seria a mulher do Mr. Krueger. Como informa o FMI, ela é "Ms. Krueger". Essa modalidade de tratamento para as mulheres surgiu nos anos 60. Foi uma conquista, pois rompeu as algemas do "Miss" (senhorita) ou "Mrs." (mulher de).
A terceira bolsa à dupla vai por ter banalizado o tratamento devido a uma mulher bem-sucedida. Ninguém chama Henry Kissinger de "sr. Kissinger". Ele é o "professor Kissinger" ou o "doutor Kissinger". Anne Krueger é doutora pela Universidade de Wisconsin e foi professora da Universidade Stanford. Palocci e Levy podem chamar a "sinhá Krueger" de "doutora".

Bombeiro
Caberá ao senador José Sarney apagar o incêndio que a liderança parlamentar petista ateou no Congresso. Esquecidos do respeito que mereceram enquanto foram oposição, os caciques da nação petista estão tratando seus adversários como se eles fossem dissidentes de seu próprio partido.

Os novos nobres
O anarcoliberalismo tomou conta do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Em tese, ele é um organismo para o qual o presidente da República designa personalidades representativas da sociedade. Foi com esse entendimento que Lula nomeou o sindicalista Paulo Pereira da Silva. Há um mês, o ex-candidato a vice-presidente na chapa do atual ministro Ciro Gomes estomagou-se com a revelação de que o PT borrava-lhe a reputação e armava arapucas para destruí-lo. Ofendido, renunciou à sua cadeira no CDES. Entrou a turma da pacificação, e o sindicalista aceitou nomear o metalúrgico João Carlos Gonçalves, o Juruna, para seu lugar.
Resta saber em que papel fica Lula, o funcionário encarregado de escolher os conselheiros. Se os dignitários podem nomear seus sucessores, o Conselho está mais para Câmara dos Lordes de escola de samba do que para um órgão de assessoria do Poder republicano.

Pedágio
O senador Garibaldi Alves (PMDB-RN) será ministro. Faz parte do pedágio que o governo pagará ao PMDB.


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