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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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OPERAÇÃO ANACONDA

Gravações mostram que grupo chegou a oferecer seus "serviços" para a campanha de Ciro Gomes durante a eleição de 2002

Quadrilha atuava em todo o país, diz PF

ANDREA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A chamada Operação Anaconda nasceu de um procedimento banal. Investigavam-se em Alagoas desvios de conduta de policiais federais. Após um ano e meio de trabalho, a Polícia Federal reuniu evidências da existência de uma quadrilha que opera em âmbito nacional.
A Folha obteve na semana passada informações, gravações e documentos confidenciais que expõem as entranhas da organização criminosa. Pratica crimes que vão da lavagem de dinheiro e da espionagem política à venda de informações sigilosas. No ano passado, operou no submundo dos negócios eleitorais.
Relatório secreto da PF datado de 9 de junho de 2003 resume em 176 páginas a ação da quadrilha. Assina-o o delegado federal Cláudio Nogueira, de Brasília. Anota os nomes de juízes, empresas e funcionários públicos.

Até ministro é citado
O documento menciona três vezes um ministro do governo Lula. Chama-se Ciro Gomes (Integração Nacional). Aparece nas páginas 54, 69 e 71 do documento. O nome de Ciro foi captado em grampos telefônicos feitos pela PF com autorização judicial.
Foi citado pela primeira vez em 2 de setembro de 2002 por César Herman Rodriguez. É agente da Polícia Federal. Encontra-se preso em São Paulo. Em diálogo com um de seus "sócios", disse que se reuniria com um irmão de Ciro, cujo nome não mencionou.
Em 16 de setembro de 2002, Rodriguez comenta, em diálogo com outro integrante da quadrilha, a reunião "com aquela pessoa". Referia-se, na opinião da PF, não mais a um irmão, mas ao "candidato Ciro Gomes", que concorria à Presidência da República.
O policial parecia buscar dados sigilosos de uma investigação que interessaria a Ciro. Queria os papéis "até as 13h" daquele dia, pois "às 15h" estaria com o próprio candidato. O interlocutor de Rodriguez dizia que seria difícil conseguir os dados em tão pouco tempo. "A documentação é muito volumosa", alegou.
Só um "relatório da Secretaria de Presidência Complementar (sic) tem cem páginas", disse o interlocutor. O órgão citado chama-se, na verdade, Secretaria de Previdência Complementar. É um apêndice do Ministério da Previdência. Fiscaliza os fundos de pensão. A PF paulista investigava à época a Funcef, o fundo de previdência da Caixa Econômica Federal. Apuravam-se desvios de US$ 58 milhões.

"Coisa para fazer barulho"
Para facilitar a obtenção dos papéis, Rodriguez estimula o interlocutor a oferecer uma "notinha" a um escrivão da PF. Explicou assim o interesse pelos dados: "É só coisa para fazer barulho".
Rodriguez voltou à carga no dia seguinte, 17 de setembro de 2002, em novo telefonema. Seu interlocutor, identificado pela PF como Aloísio, disse que não havia tirado as cópias porque entendera que deveria aguardar o resultado de conversa com o candidato.
O agente da PF diz no diálogo captado pela escuta telefônica que já havia falado "com o próprio Ciro". Voltou a enfatizar o interesse pela papelada. Dali a 19 dias ocorreria, em 6 de outubro, o primeiro turno das eleições presidenciais. Ciro não passou ao segundo turno. Procurado pela Folha na sexta feira, o hoje ministro disse que nem mesmo conhece o policial Rodriguez.
As incursões da quadrilha na seara eleitoral não se limitaram aos supostos contatos com Ciro Gomes. Em 19 de setembro de 2002, um membro da quadrilha identificado pela PF apenas como Valcy telefona para um ex-policial civil de Brasília chamado José Marques Ferreira. É conhecido como Mineirinho.
Valcy pergunta a Mineirinho se ele conhece "algum gerente do Banco do Brasil" a quem se pudesse fazer uma "proposta de negócio sobre desvio de campanha política de Brasília".
Mineirinho diz possuir números e saldos de contas de campanha. Menciona contas com saldos de "R$ 1 milhão, R$ 2 milhões e R$ 14 milhões".

"Contas frias"
Sem citar nomes, Mineirinho diz que "o pessoal está desviando, mas não tem experiência, pois desviam para eles mesmos". Afirma que "tem de haver um intermediário para fazer a operação". Revela como seria feito o rateio: "70 ficaria para eles e 30% para os intermediários". O negócio seria seguro, "pois as contas são frias, pertencentes a fantasmas".
A investigação da PF foi tocada até meados de 2003 sob a supervisão do Ministério Público e da Justiça Federal de Alagoas. Só há três meses, no dia 13 de agosto de 2003, o caso migrou para São Paulo, centro operacional da quadrilha. Àquela altura, os grampos da PF já haviam captado os nomes e as vozes de juízes que atuam na capital paulista.
O quadro desenhado pela investigação é dramático. A quadrilha operava, com rara desenvoltura, no coração financeiro do país. Valia-se da estrutura da própria PF em São Paulo. Possuía contatos na Polícia Civil. Geria negócios de norte -Santarém (PA)- a sul -Passo Fundo (RS) - do país.

Agentes e juízes
A mobilidade do esquema era assegurada pelo próprio Rodriguez e por um delegado da Polícia Federal chamado José Augusto Bellini. Encontrava-se em atividade até duas semanas atrás, quando foi preso. Possuíam esquemas para desembaraçar contrabando no aeroporto de Cumbica (SP) e no porto de Santos (SP).
O conteúdo da escuta revela que os agentes da PF agiam em parceria com juízes. Não se limitavam a brecar investigações. Abriam e conduziam apurações que visavam a extorsão de empresários. Operavam com maior desenvoltura sob a jurisdição do magistrado João Carlos da Rocha Mattos, preso na última sexta-feira.
Os documentos da PF citam outros dois juízes: os irmãos Casem e Ali Mazloum. Não há vestígio da voz de Ali nas gravações reunidas durante a investigação. Apenas Casem e Rocha Mattos foram ouvidos diretamente.
Casem é exposto em situações constrangedoras. Num dos diálogos, encomenda ao agente Herman Rodriguez um grampo telefônico ilegal. Fora solicitado pelo prefeito de Cotia (SP), Joaquim Pedroso (PSDB), que suspeitava de infidelidade da mulher.

Custo da escuta
O grampo ilegal era prática corriqueira da quadrilha. Numa das conversas grampeadas, Rodriguez indagou a um parceiro sobre o custo de uma escuta. O interlocutor disse que precisaria perguntar "ao pessoal". Com naturalidade, o agente federal Rodriguez indaga quanto foi cobrado "da última vez". E o interlocutor: "R$ 1.000 por semana".
No caso da encomenda para o prefeito de Cotia o preço seria "indigesto". Tratava-se de um aparelho celular, mais difícil de ser xeretado do que um telefone fixo. A quadrilha, porém, não mediu esforços para atender ao pedido do juiz Casem Mazloum.
Em contato com um suposto primo do juiz, chamado Caled, Rodriguez informa que está conseguindo obter dados cadastrais dos proprietários dos celulares de forma oficial. Requisitou-os à companhia telefônica em nome da PF. Alegou, em ofício, que o prefeito de Cotia e seus familiares estavam sendo ameaçados por desconhecidos. Uma falsidade.

"Dez paus"
As falas de Rocha Mattos chocam pela crueza. Em conversa com Rodriguez, no dia 23 de abril de 2003, o próprio juiz revela que certa vez concedeu habeas corpus em troca de "dez paus". Receoso de que estivessem sob escuta, o agente alerta ao magistrado que falava de seu "telefone celular".
Em outros diálogos com o mesmo Rodriguez, o juiz Rocha Mattos acerta o recebimento de dinheiro da quadrilha. Reivindica o depósito em sua conta bancária de R$ 50 mil. O interlocutor concorda. Acertam a simulação de um contrato de empréstimo. O magistrado afirma que, depois, se não puder quitar o débito, paga "com serviços jurídicos".
Nos diálogos da quadrilha surge também o prenome de um desembargador paulista. A reportagem constatou que há, de fato, um magistrado com o nome citado na página oito do relatório da PF. O jornal evita divulgar o nome do desembargador porque não conseguiu localizá-lo.



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