São Paulo, quinta-feira, 09 de novembro de 2006

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Militar começa a ser julgado por tortura

Decisão inédita da Justiça de SP permite, apesar da Lei da Anistia, que Brilhante Ustra seja réu em processo movido por família

Maria Amélia de Almeida Teles diz ter sido torturada pessoalmente pelo coronel; sua irmã, seu marido e os dois filhos foram presos

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Depois de a Justiça decidir, numa situação inédita, que a Lei de Anistia (1979) não impede a abertura de processo contra militares acusados de tortura durante o regime militar (1964-85), ocorreu ontem a primeira audiência que coloca o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra no banco dos réus.
Cinco pessoas de uma mesma família processam Ustra, acusando-o de seqüestro e tortura em 1972 e 1973.
Ustra não compareceu ao tribunal e não ouviu os relatos das cinco testemunhas da família, que disseram terem sido torturadas sob o comando do coronel (leia texto nesta página).
Os advogados do militar já informaram que irão recorrer da decisão de primeira instância que permite a abertura de processo contra os anistiados.
A novidade da decisão judicial é que, ao contrário de processos anteriores relativos à tortura durante a ditadura militar, ela não visa o Estado, mas um funcionário público.
O processo civil movido pela família contra Ustra é declaratória. Pede o reconhecimento (declaração) de que houve danos morais e à integridade física. Seu conteúdo é mais político e simbólico. Não requer indenização pecuniária nem implica pena de multa ou prisão.
Na Argentina, as "leis do perdão" foram revogadas, e os acusados por tortura na ditadura militar do país (1976-83) são submetidos a julgamento.

A decisão
Na decisão publicada em 27 de setembro, o juiz titular Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo, considerou que o processo pode ter como réu pessoa física -Ustra-, e não necessariamente a União.
E que, mesmo três décadas após os acontecimentos relatados pelos autores da ação e negados pelo militar, é possível haver punição, porque estão "em causa [...] direitos humanos". Para Santini, a ação é imprescritível.
O casal César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles e três parentes afirmam que o coronel reformado Ustra os submeteu à tortura física e psicológica nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações -Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo.
"Fui torturada pessoalmente pelo coronel. Foi ele também que determinou a invasão da minha casa, a prisão da minha irmã e de meus dois filhos, que tinham quatro e cinco anos", afirmou Maria Amélia, que ficou 11 meses presa. "Meus filhos ficaram pelo menos dez dias na prisão."
O DOI-Codi era o principal órgão de segurança empenhado no combate a opositores do regime militar.
Na sua unidade paulista, ao menos 40 militantes foram mortos sob tortura de setembro de 1970 a janeiro de 74, conforme levantamentos independentes. Nesse período, o comandante era Ustra.

Defesa
Um dos pilares da defesa de Ustra no processo é a afirmação de que os agentes de segurança foram beneficiados pela anistia de 1979 e que, por isso, não podem ser julgados.
Para o juiz da 23ª Vara Cível, no entanto, "a Lei de Anistia refere-se apenas a crimes, não a demandas de natureza civil" -como a ação declaratória.
Ustra também alegou que a ação deveria ter o Estado como réu. Para o juiz, "não há no ordenamento jurídico norma que impeça a vítima de atuação de agente estatal de propor ação contra este".
A Justiça ainda não se pronunciou sobre o mérito da ação. Ustra sustenta que não submeteu seus acusadores a violência. Seus defensores afirmam nos autos: "Quanto às descrições de tortura (...), o réu [Ustra] jamais permitiria semelhante ato".


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