São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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ELIO GASPARI

Os simuladores de produtividade articularam o caos

Muito gogó e pouco trabalho os males do governo são. Se FFHH botar sua turma para trabalhar, livra-se de boa parte dos problemas que tem sobre a mesa. Em quatro anos, habituou-se de tal forma à administração da virtualidade, que, de duas, uma: ou não existe o seu governo, ou não existe o país que ele supõe governar. Esse vício é parcialmente responsável pela crise da moratória mineira.
O Banco Central sempre soube que alguns governadores assumiriam contas amargas. Durante a campanha eleitoral, Itamar Franco e Paulo Maluf deram claras indicações de que poderiam decretar a moratória em seus Estados. Mário Covas e a providência divina tiraram Maluf da estrada. Sobrou Itamar Franco. FFHH, tão cordial com seus adversários, não procurou abrir canais de entendimento com seu ex-chefe. Preferiu o atrito. Saudou o tucano Eduardo Azeredo, a quem Itamar batera nas urnas, como um dos maiores governadores que Minas Gerais já teve. (Minas foi governada por Juscelino Kubitschek, Milton Campos e Magalhães Pinto.) Desqualificou a discussão da dívida transformando o doutor Pedro Parente, secretário-executivo do Ministério da Fazenda, em interlocutor do governador mineiro. Tratou-o como se fosse inquilino caloteiro, quando até os senhorios sabem que cara feia não traz aluguel. Apostou que Itamar não seria capaz de decretar a moratória. Fez isso sabendo que Itamar Franco sempre foi capaz de tudo. Só Itamar seria capaz de pôr um sociólogo no comando da economia nacional. E deu certo.
Admita-se que, no caso de Minas Gerais, não havia o que fazer. No Rio Grande do Sul, foi eleito o petista Olívio Dutra. Era previsível que tomasse um caminho semelhante. Recebeu um Estado cuja dívida passou de R$ 3,5 bilhões para R$ 8 bilhões sem ter emitido um só papel. O secretário da Fazenda de Olívio pediu uma audiência ao ministro Pedro Malan. Só para conversar. Até quinta-feira da semana passada, o gabinete de Malan não tinha encontrado espaço em sua agenda. A essa altura, Olívio já suspendera o pagamento da primeira parcela de sua contas. Se tivesse pedido audiência ao economista Stanley Fischer, do FMI, talvez tivesse melhor sorte.
FFHH e Malan sempre souberam que a dívida dos Estados confundia-se com o projeto político dos novos governadores. Poderiam ter conversado antes. Se não havia conversa possível, que tomassem a ofensiva, denunciando a inconsequência das moratórias antes que elas se materializassem. Teriam evitado, pelo menos, que Itamar assustasse a banca internacional. (Vale registrar que o governador mineiro anunciou a suspensão do pagamento dos eurobônus por pura malvadeza, pois os US$ 108 milhões que vencem no mês que vem já estão com o governo federal.)
Se a moratória mineira prejudica a "imagem do Brasil no exterior", foi a preguiça do Executivo que estimulou a falsa tranquilidade do início do ano. Ademais, quem diz que o governo brasileiro "pode estar estrangulando a economia e impedindo o crescimento do país" com uma política que faz prosperar a agiotagem não é Itamar Franco, é o "The Wall Street Journal". A "imagem" que drenou US$ 30 bilhões das reservas nacionais foi produzida pelas apostas da ekipekonômica. Se em dezembro passado saíram US$ 5,2 bilhões, Itamar Franco nada teve a ver com isso.
Com a dívida dos Estados batendo-lhe à porta, o governo deu-se à simulação de produtividade. Diante do desemprego, mudou o nome do Ministério do Trabalho. Agora ele se chama Ministério do Trabalho e do Emprego. Qual a diferença entre trabalho e emprego? É que uma economia pode prosperar havendo pessoas que trabalham sem ter emprego, enquanto o Estado é especialista em dar empregos a pessoas que não trabalham. Depois criou o Ministério do Esporte e do Turismo. O que tem a ver uma coisa com a outra? Esporte e Turismo só andam juntos para os cartolas, congressistas e magistrados que descolam convites para assistir aos jogos da Copa do Mundo. Em outros casos, o governo articulou o caos. Dois exemplos, ambos deste ano que começa.
Extinguiu o Departamento Nacional de Obras contra as Secas. Fez isso exatamente no pico de uma grave seca nordestina. Até aí, tudo bem, porque o Dnocs serviu sobretudo para levar champanhe ao andar de cima às custas da sede do andar de baixo. Como o Dnocs é o responsável pela política de águas do Nordeste, de um dia para o outro desapareceu o interlocutor oficial de todos os interessados em projetos de irrigação. Não se sabe precisamente para onde vai o seu patrimônio, muito menos as suas atribuições reguladoras. Isso poderia ter sido evitado se a extinção do Dnocs tivesse sido acompanhada pela redistribuição de suas responsabilidades. Para fazer isso precisava-se trabalhar. Faltou.
Até as pedras do Planalto sabiam que no dia 31 de dezembro caducariam as verbas destinadas a pagar pelas cestas básicas e pelas frentes de trabalho do Nordeste. Nunca passou pela cabeça de FFHH suspender o fluxo desse dinheiro. Para evitar hiatos administrativos, bastaria botar papel na impressora e digitar meia dúzia de providências. Faltou.
Sabe-se que em março estourará o problema da inadimplência dos estudantes das escolas particulares. Até agora não se fez nada. Quando aparecerem donos de colégios mostrando que os calotes chegam a 50% de suas receitas e pais desempregados defendendo a matrícula de seus filhos, vão dizer que surgiu uma crise. A crise está aí.
O que falta é trabalho.

Fuzilamento
Se o PFL se distraísse, FFHH teria criado o Ministério do Desenvolvimento Urbano para abrigar o empresário Emílio Carrazai, cuja indicação para a Caixa Econômica Federal o ministro Pedro Malan vinha vetando. Seus caciques não quiseram carregar a conta da criação de um novo ministério.

Vivendo e aprendendo
Há um ano, a ekipekonômica tratava o governador Mário Covas como um governador sem dinheiro e candidato sem votos. Era a época do namoro de FFHH com Paulo Maluf.
Hoje, seu destino está nas mãos do governador de São Paulo. Isso não significa que ela tenha futuro. Ensina apenas que não se deve subestimar quem faz política com votos.

Erro
Os leitores Célio Belmiro Affeldt e Fernando de Oliveira Carvalho corrigem um erro e uma injustiça cometida aqui com o INSS.
No dia 22 de junho de 1998, um trabalhador das jazidas de mármore do Espírito Santo (Moacir Pereira Passos) foi esmagado por uma pedra, e no comunicado de acidente de trabalho (CAT) registrou-se o episódio informando que "ao retornar-se do seu horário de almoço, o mesmo não enxergou-se uma pedra vindo em sua direção desgovernada bateu em sua cabeça".
Essa mistificação factual (noves fora o português) foi atribuída ao INSS. Ele nada tem a ver com a história. Quem preenche os CATs é a empresa, um médico, o sindicato ou até mesmo a família.

Greca pisou no calo de Charles Chaplin
Rafael Greca, novo ministro dos Esportes e do Turismo, entrou com o pé esquerdo no palavrório do poder. Informou que não pretende estimular o sumiço dos miseráveis das cidades turísticas brasileiras, pois "o povo nunca é um defeito do país, é sempre uma qualidade". Ia muito bem, até que resolveu atravessar a rua para escorregar na casca de banana que estava na outra calçada e saiu-se com a seguinte pérola:
"Há um caráter lírico em alguns mendigos e despossuídos que os torna semelhantes ao Carlitos."
Encrencou-se com Carlitos. Em vida, Charles Chaplin foi confrontado com uma observação semelhante. Nasceu pobre, morreu-lhe o pai aos 10 anos e, na miséria, viu a mãe enlouquecida sendo levada para um hospital. Nunca esqueceu o olhar dessa despedida. Também não esqueceu que ela o culpou pela loucura, pois na tarde de sua grande crise deixou de lhe dar uma xícara de chá.
Diante de tanta desgraça, o escritor inglês Somerset Maugham atribuiu a Chaplin uma "nostalgia dos cortiços": "Para ele, as ruas pobres do sul de Londres são um ambiente de pândegas, de aventuras alegres e extravagantes...".
Chaplin respondeu com uma das mais bonitas páginas de sua "História de Minha Vida":
"Ainda não encontrei um só pobre que sentimentalize a pobreza ou que nela encontre libertação. (...) Paroladas como essa de que "as ruas da zona sul de Londres são um ambiente de pândegas, de aventuras alegres e extravagantes' fazem lembrar as zombarias frívolas de Maria Antonieta. (...) Nunca achei a pobreza atrativa nem edificante. O que ela me ensinou foi só uma distorção de valores, a superestimar as virtudes e os refinamentos dos ricos e das pretensas elites sociais".
(Para que essa história lembre Carlitos: sua mãe terminou a existência em conforto, num quarto cheio de flores, com os filhos já ricos e famosos.)

A TeleTunga morde sem dor
Todo cuidado é pouco com as contas de telefone. Em São Paulo, estão ocorrendo casos em que a Telefônica cobra ligações que não fazem sentido.Três exemplos:
A um cidadão cobraram em novembro R$ 1,20 por quatro chamadas interestaduais feitas em intervalos sucessivos de 30 segundos.
Em dezembro, sua conta veio com outras quatro ligações, sempre sucessivas e sempre para o mesmo número, separadas por intervalos de menos de um minuto. Dessa vez cobravam-lhe R$ 2,00.
Noutro caso, a conta informava que entre as 21h31 e as 22h05 do dia de Natal um assinante fizera nove ligações para o mesmo aparelho celular do Rio de Janeiro. Pagou por isso pouco mais que R$ 1.
Parece difícil transplantar essa contabilidade para a vida real. O sujeito disca, o telefone toca, o amigo atende, ele diz metade de uma palavra, desliga e começa tudo de novo.
Secretária eletrônica não é, porque ainda não apareceu maníaco interessado em ouvir a mesma mensagem três vezes.
Máquina de fax, nem pensar.
Internet? Difícil.
Quem já ouviu a linha cair antes que aparecesse a voz do outro lado poderá suspeitar que, por alguma razão, essa chamada está sendo indevidamente cobrada.
Não se pode dizer que a Telefônica ou qualquer outra empresa emissora da conta seja a responsável pelo erro. Num telefonema de uma cidade para outra, o problema pode estar em qualquer das duas pontas ou até mesmo na Embratel, que as conecta.
A tunga é quase indolor, pois em geral gira entre R$ 0,18 e R$ 0,45 por chamada. Custa poucos reais por mês a cada vítima. Estimando que uma companhia tenha 2 milhões de assinantes, isso significa um bom dinheiro.
Se ninguém reclamar, vira um hábito.
A Telefônica de São Paulo informa que está correndo atrás do problema. Pede aos seus assinantes que reclamem ao número 104 e anuncia que habilitou um aparelho de fax (256-2370) para receber queixas. Basta um bilhete acompanhado da conta.
É meia solução, porque ela não sabe informar quanto tempo levará para devolver o que eventualmente tenha sido cobrado sem motivo. A companhia que emite a conta depende de informações das empresas que estão do outro lado da linha, ou da Embratel.
Quem reclamar pelo telefone e ouvir que deve ir a uma das lojas da empresa esteja certo de que recebeu uma informação demencial. Só uma pessoa capaz de falar ao telefone três vezes em menos de um minuto seria capaz de gastar R$ 2,30 de ônibus para reclamar de uma cobrança de R$ 1,50.


POESIA

Joan Brossa
(Poeta catalão, morto em dezembro passado, pouco antes de completar 90 anos. Seus "Poemas Civis" acabam de sair em livro, traduzidos do original por Ronald Polito e Sergio Alcides.)

Sala de jantar
A mesa diz: Sim, mas você
tem que se cuidar um pouco mais
E o espelho diz: Todo mundo tem a
boca seca quando dorme, é evidente
E há também um bufê cheio
de taças. O que quer que digam,
diz, creio que ficarei satisfeito.
E a sacada responde que só quer
ver como as pessoas estão passando.


Os palhaços têm esta cara
branca com o nariz vermelho:
preste
atenção também na meia lágrima
preta pintada no olho esquerdo.
Tinha um palhaço que se pintava
com aquarela. Visto de perto
fazia efeito; mas de longe
perdia muito


Amor,
neste poema
não existe o tempo:
todo o curso do Universo
nele se dá de uma vez.


Envio
Poeta:
enquanto dura o negror
tape os buracos da barca
até que venha o fulgor.


Toda a peça é de linho, com seda
colorida, ornamentada
com motivo vegetal
onde nascem folhas carnudas
Pois bem: no meio tem um rasgo



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