São Paulo, sábado, 10 de março de 2007

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ANÁLISE

Lula desce do muro, para o lado de Bush

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Menos de um mês depois da primeira posse, em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva participou do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e do Fórum Econômico Mundial, em Davos.
Ele repetiu a dose dois anos mais tarde.
Tentava sempre manter um pé em cada um dos muros (simbólicos, ao menos) em que se dividia a globalização. Dois meses e meio depois da segunda posse, a visita de George Walker Bush a São Paulo e, dentro de três semanas, a do próprio Lula a Washington, acabam representando a descida do muro por parte do presidente brasileiro, para ficar do lado do que seus antigos aliados do Fórum Social chamam de "globalização corporativa".
Mas, no seu estilo sempre ambíguo e quase sempre roçando a megalomania, o presidente Lula pode apresentar sua descida do muro como um triunfo do social.
Pelo menos na visão do presidente, o acordo com Bush sobre o etanol, por vago que seja e ainda que carente de investimentos bem definidos, faz parte da mudança na geografia comercial do planeta, a imodesta cruzada a que se lançou desde o início do primeiro governo. Ou de "novo momento para a humanidade", como o definiu ontem, com mais megalomania.
A lógica, presente em oito de cada 10 discursos que Lula faz em suas viagens ao exterior, é mais ou menos a seguinte: a tecnologia brasileira, a melhor do mundo no quesito etanol, acoplada a capitais do mundo rico (no caso, os Estados Unidos) permitirá que países pobres do Caribe, da América Central e da África, plantem cana de açúcar (ou outros cultivos aptos para produzir biocombustíveis) e os exportem para Estados Unidos, União Européia e Japão.
Criaria empregos, geraria renda e termos de intercâmbio menos desfavoráveis aos países do Sul.
Se funcionará ou não, só o tempo dirá. Mas o fato de George W. Bush ter se interessado pelo assunto, por conta da viagem ao Brasil, já o encravou na agenda global (nunca, como gosta de dizer Lula, a mídia no mundo todo falou tanto de etanol/biocombustíveis como o está fazendo a propósito da escala do presidente dos EUA em São Paulo).
Para Lula, o fato de o memorando de entendimento com os Estados Unidos deixar para depois a questão da sobretaxa que os EUA impõem ao etanol nem chega a ser relevante.
Carimbar o protecionismo norte-americano como "nefasto" horas antes da chegada de Bush faz parte do que os argentinos gostam de chamar de "saludo a la bandera".
Bate-se continência ao passar por ela, mas depois a vida segue igual.
Criticar o protecionismo do mundo rico é tópico que se encontra em 11 de cada 10 discursos de presidentes brasileiros desde que as negociações comerciais globais se tornaram prática constante.
Como é "saludo a la bandera" a concordância dos dois presidentes com a necessidade de destravar a Rodada Doha, a mais recente ronda de liberalização comercial, praticamente parada desde o seu lançamento em 2001. Bush e Lula, para não mencionar outros governantes, como Tony Blair e Angela Merkel, já fizeram mil apelos para que se chegue o mais depressa possível a um acordo, sem, no entanto, modificar a realidade na mesa de negociação.

Chávez
Lula desceu do muro também em relação a Hugo Chávez, mas, fiel a seu estilo de tentar dizer sempre a cada interlocutor o que este quer ouvir, jamais assumirá de público o afastamento ou restrições ao presidente da Venezuela (tanto que deve ir a Caracas em abril).
Esse capítulo é o "saludo a la bandera" de parte de Bush e comitiva. Imaginar que Lula possa "moderar" Chávez, como fontes de Washington cansaram de dizer aos jornalistas brasileiros, é desconhecer Chávez (e Lula). Chávez é "imoderável", de que deu provas perante Lula mais de uma vez.
Em Cusco (Peru), no fim de 2005, quando do lançamento da Casa (Comunidade Sul-Americana de Nações), Chávez atacou as cúpulas regionais por seu excesso de falatório e carência de ações concretas e rápidas. Lula tentou seu estilo paternalista, dizendo que a impaciência de Chávez se devia a sua juventude, que o "maduro" Lula compreenderia mas não justificaria.
À saída do bate-boca em sessão fechada, Chávez disse à Folha que "impacientes estavam os milhões de latino-americanos que, à esta altura do dia, ainda não tiveram uma só refeição" (já era o meio da tarde).
Se é incontrolável em uma tema inócuo como a eficácia das cúpulas, é fácil imaginar o que diria Chávez se Lula, "terceirizado" por Bush, tentasse dar palpites sobre o "socialismo do século 21".
O que Lula pode fazer a respeito, já fez. Primeiro, ao dizer que ser de esquerda é tolice, a não ser quando se é jovem, etapa que tanto Lula como Chávez já superaram há muito tempo. Segundo, ao dizer, em recente café da manhã com jornalistas, que tentar a re-reeleição seria "brincar com a democracia".
Não era um comentário voltado para Chávez, mas serve à perfeição para quem não só quer a re-reeleição como a quer quantas vezes puder.
Tudo somado, tem-se que ficou parcialmente incorreta uma frase de Bush sobre Lula, dita ao então primeiro-ministro de Portugal, José Manuel Durão Barroso, hoje presidente da Comissão Européia, que a reproduziu para a Folha em 2004:
"Lula é de esquerda, mas eu gosto muito dele", comentou Bush a Durão Barroso.
É cedo para saber se, ao deixar São Paulo, Bush está gostando mais ainda de Lula, mas a quantidade de vezes em que elogiou a liderança de Lula (no Haiti, na África, nos combustíveis limpos) torna definitivo dizer que o presidente brasileiro não é de esquerda, pelo menos da esquerda que, em vários países da região, gritou e gritará "Fora Bush".


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