|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Lula desce do muro, para o lado de Bush
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Menos de um mês depois da
primeira posse, em 2003, Luiz
Inácio Lula da Silva participou
do Fórum Social Mundial, em
Porto Alegre, e do Fórum Econômico Mundial, em Davos.
Ele repetiu a dose dois anos
mais tarde.
Tentava sempre manter um
pé em cada um dos muros (simbólicos, ao menos) em que se
dividia a globalização. Dois meses e meio depois da segunda
posse, a visita de George Walker Bush a São Paulo e, dentro
de três semanas, a do próprio
Lula a Washington, acabam representando a descida do muro
por parte do presidente brasileiro, para ficar do lado do que
seus antigos aliados do Fórum
Social chamam de "globalização corporativa".
Mas, no seu estilo sempre
ambíguo e quase sempre roçando a megalomania, o presidente Lula pode apresentar sua
descida do muro como um
triunfo do social.
Pelo menos na visão do presidente, o acordo com Bush sobre o etanol, por vago que seja e
ainda que carente de investimentos bem definidos, faz parte da mudança na geografia comercial do planeta, a imodesta
cruzada a que se lançou desde o
início do primeiro governo. Ou
de "novo momento para a humanidade", como o definiu ontem, com mais megalomania.
A lógica, presente em oito de
cada 10 discursos que Lula faz
em suas viagens ao exterior, é
mais ou menos a seguinte: a
tecnologia brasileira, a melhor
do mundo no quesito etanol,
acoplada a capitais do mundo
rico (no caso, os Estados Unidos) permitirá que países pobres do Caribe, da América
Central e da África, plantem cana de açúcar (ou outros cultivos
aptos para produzir biocombustíveis) e os exportem para
Estados Unidos, União Européia e Japão.
Criaria empregos, geraria
renda e termos de intercâmbio
menos desfavoráveis aos países
do Sul.
Se funcionará ou não, só o
tempo dirá. Mas o fato de George W. Bush ter se interessado
pelo assunto, por conta da viagem ao Brasil, já o encravou na
agenda global (nunca, como
gosta de dizer Lula, a mídia no
mundo todo falou tanto de etanol/biocombustíveis como o
está fazendo a propósito da escala do presidente dos EUA em
São Paulo).
Para Lula, o fato de o memorando de entendimento com os
Estados Unidos deixar para depois a questão da sobretaxa que
os EUA impõem ao etanol nem
chega a ser relevante.
Carimbar o protecionismo
norte-americano como "nefasto" horas antes da chegada de
Bush faz parte do que os argentinos gostam de chamar de "saludo a la bandera".
Bate-se continência ao passar por ela, mas depois a vida
segue igual.
Criticar o protecionismo do
mundo rico é tópico que se encontra em 11 de cada 10 discursos de presidentes brasileiros
desde que as negociações comerciais globais se tornaram
prática constante.
Como é "saludo a la bandera"
a concordância dos dois presidentes com a necessidade de
destravar a Rodada Doha, a
mais recente ronda de liberalização comercial, praticamente
parada desde o seu lançamento
em 2001. Bush e Lula, para não
mencionar outros governantes,
como Tony Blair e Angela Merkel, já fizeram mil apelos para
que se chegue o mais depressa
possível a um acordo, sem, no
entanto, modificar a realidade
na mesa de negociação.
Chávez
Lula desceu do muro também em relação a Hugo Chávez,
mas, fiel a seu estilo de tentar
dizer sempre a cada interlocutor o que este quer ouvir, jamais assumirá de público o
afastamento ou restrições ao
presidente da Venezuela (tanto
que deve ir a Caracas em abril).
Esse capítulo é o "saludo a la
bandera" de parte de Bush e comitiva. Imaginar que Lula possa "moderar" Chávez, como
fontes de Washington cansaram de dizer aos jornalistas
brasileiros, é desconhecer Chávez (e Lula). Chávez é "imoderável", de que deu provas perante Lula mais de uma vez.
Em Cusco (Peru), no fim de
2005, quando do lançamento
da Casa (Comunidade Sul-Americana de Nações), Chávez
atacou as cúpulas regionais por
seu excesso de falatório e carência de ações concretas e rápidas. Lula tentou seu estilo paternalista, dizendo que a impaciência de Chávez se devia a sua
juventude, que o "maduro" Lula compreenderia mas não justificaria.
À saída do bate-boca em sessão fechada, Chávez disse à Folha que "impacientes estavam
os milhões de latino-americanos que, à esta altura do dia,
ainda não tiveram uma só refeição" (já era o meio da tarde).
Se é incontrolável em uma
tema inócuo como a eficácia
das cúpulas, é fácil imaginar o
que diria Chávez se Lula, "terceirizado" por Bush, tentasse
dar palpites sobre o "socialismo
do século 21".
O que Lula pode fazer a respeito, já fez. Primeiro, ao dizer
que ser de esquerda é tolice, a
não ser quando se é jovem, etapa que tanto Lula como Chávez
já superaram há muito tempo.
Segundo, ao dizer, em recente
café da manhã com jornalistas,
que tentar a re-reeleição seria
"brincar com a democracia".
Não era um comentário voltado para Chávez, mas serve à
perfeição para quem não só
quer a re-reeleição como a quer
quantas vezes puder.
Tudo somado, tem-se que ficou parcialmente incorreta
uma frase de Bush sobre Lula,
dita ao então primeiro-ministro de Portugal, José Manuel
Durão Barroso, hoje presidente
da Comissão Européia, que a
reproduziu para a Folha em
2004:
"Lula é de esquerda, mas eu
gosto muito dele", comentou
Bush a Durão Barroso.
É cedo para saber se, ao deixar São Paulo, Bush está gostando mais ainda de Lula, mas a
quantidade de vezes em que
elogiou a liderança de Lula (no
Haiti, na África, nos combustíveis limpos) torna definitivo dizer que o presidente brasileiro
não é de esquerda, pelo menos
da esquerda que, em vários países da região, gritou e gritará
"Fora Bush".
Texto Anterior: EUA importam menos petróleo da Venezuela Próximo Texto: Americanas Índice
|