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ENTREVISTAS DA 2ª
Nenhuma colonização é boa, diz o português Romero Magalhães
Historiador diz que brasileiros já tiveram tempo suficiente para reverter desigualdades sociais que poderiam ter sido causadas pela colonização
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RUI NOGUEIRA
Secretário de Redação da Sucursal de Brasília
A colonização não pode ser usada sem critério histórico para justificar as mazelas de hoje. Na opinião do historiador português
Joaquim Romero Magalhães, 57,
isso produz um "anedotário" de
falsas explicações.
Romero Magalhães é o comissário-geral da Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, que
coordena toda a programação e
os estudos em torno do movimento de expansão marítima.
Criada em 86, a CNCDP encerra
os trabalhos em 2001, com a comemoração da descoberta da
Terra Nova.
Magalhães falou à Folha, por telefone, da lenda da Escola de Sagres, que nunca existiu, e do
"achado" do Brasil por Pedro Álvares Cabral, que ele considera
obra do acaso. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Folha - O sr. critica o uso do esquema multiculturalista, importado dos EUA, para estudar a colonização portuguesa. Diz, inclusive, que produz resultados
anedóticos. Por exemplo?
Joaquim Romero Magalhães -
É anedótico dizer que os portugueses deram cabo da mata atlântica e do pau-brasil. Se nós raciocinarmos um bocadinho, veremos que os portugueses, ou qualquer europeu que fosse, nos princípios do século 16 (e mesmo até
meados do século 19) não tinham
condições técnicas para derrubar
tamanha extensão de mata. Não
dispunham de serras mecânicas,
o que levou à devastação da mata
atlântica.
Isso é um problema brasileiro,
isso aconteceu depois da Independência (1822). O anedotário é
resultado de querer imputar razões que não são as daqueles tempos. É o anacronismo a entrar na
história.
Folha - Qual é o pecado original da análise multiculturalista?
Romero Magalhães - O Brasil é
o resultado de uma transformação de culturas que vão sendo
processadas em um longo devir
histórico, desde as comunidades
naturais, primitivas, que não formavam uma comunidade, eram
uma pluralidade, até aquelas que
vão chegando da Europa e da
África. Essas comunidades não se
mantêm estáticas. E se nós quisermos fazer hoje uma análise do tipo "isto é negro", "isto é índio", "isto
é europeu", reduzimos uma a variedade a três elementos apenas.
Isso é um erro porque desprezamos a dinâmica das várias culturas que se interinfluenciam. Exatamente o contrário de uma sociedade como a dos EUA, em que
os vários núcleos se desenvolvem
paralelamente, sem interação. Isso não serve para o Brasil.
Folha - A desigualdade na sociedade brasileira não é herança
direta da colonização?
Romero Magalhães - Penso que
não. Apesar de diferenças sociais
também existirem em Portugal,
não são tão gritantes como no
Brasil. A verdade é que 180 anos
depois da Independência isso já
podia estar corrigido. E não está.
Folha - Qual é, então, a síntese
do legado da colonização portuguesa no Brasil?
Romero Magalhães - Nenhuma
colonização pode ser reduzida a
um rol de crimes, mas nenhuma
colonização pode ser boa. A síntese do legado português no Brasil é
a unidade do território que nunca
chegou à ruptura. A unidade que
leva a que a língua seja a mesma,
que nem sequer variedades dialetais tenha. Disso, nós portugueses
devemos nos honrar muito.
Folha - Para que servem datas
como a dos 500 anos?
Romero Magalhães - São momentos de reflexão e de estudo. É
evidente que, para isso, é preciso
chamar a atenção, alertar as pessoas para a efeméride e, portanto,
a festa é um componente que funciona apenas como desencadeador do processo de reflexão.
Folha - Há alguma importância
histórica em saber quem chegou primeiro ao Brasil, se Cabral, Pinzón, Duarte Pacheco?
Romero Magalhães - Não.
Aplicando uma frase de Capistrano de Abreu, sociologicamente o
que marcou foi Portugal. Os espanhóis, ainda que como erudito recuse a presença dos espanhóis,
nem sequer a toponímia deixaram, nem os nomes das terras ficaram. Se passaram pelo Brasil,
ninguém deu por isso.
Folha - Cabral chegou aqui por
querer ou por casualidade?
Romero Magalhães - Eu não tenho certezas. A documentação
obriga a dizer que foi o acaso. Todavia, há elementos de ordem
náutica que permitem suspeitar
que as coisas poderiam ter sido de
outra maneira. É verdade que os
portugueses conheciam bem as
rotas do Atlântico. Basta ver as rotas de Vasco da Gama e a de Cabral, que são diferentes porque
variam os meses do ano, ventos e
correntes. Isso faz pensar que havia fortes indícios que levaram à
aproximação pelo oeste da frota
de Cabral.
Repare que Cabral nem sequer
levava padrões (colunas de pedra
com as armas da Coroa portuguesa). O usual, quando ia a descobrir, era levar padrões para assinalar a posse por parte do rei de
Portugal. No Brasil, tiveram de
derrubar uma árvore e fazer uma
cruz, para fixar próximo da Coroa
Vermelha. Significa que a frota
não ia a descobrir, mas havia fortes indícios de terra.
Folha - De que maneira se formou a lenda da Escola de Sagres, que nunca existiu como
escola de navegação?
Romero Magalhães - Realmente a escola nunca existiu. Os compêndios de história em Portugal já
nem falam da Escola de Sagres, no
Brasil é que ainda têm isso. É uma
coisa do século 19, quando se
apostava na reforma da sociedade
por meio do ensino escolar e não
se admitia que no século 15 pudesse haver conhecimentos que
não fossem aprendidos em um
banco escolar.
É difícil voltar à sociedade do século 15 e pensar que as coisas
eram observadas no convés das
caravelas e que eram transmitidas
informações sem passar por um
processo de escolaridade. Havia
aquilo que Camões e Garcia da
Horta chamaram de "experiência
madre das cousas", o "saber de
experiência feito". É o saber empírico, transmitido sem o estudo escolar. Fomos viciados, do século
17 para cá, na idéia de que aprendizagem é sinônimo de escola.
Folha - Caetano Veloso disse,
em entrevista a um jornal de
Lisboa, que os portugueses passaram o tempo no Brasil a "sugar, sugar, sugar e matar índios". Qual é o seu comentário?
Romero Magalhães - Acho que
isso vai bem a quem quer que vá
bem. Não me parece que corresponda sequer ao pensamento do
próprio Caetano Veloso. Ele se
deixou embarcar em qualquer
coisa que passou à frente. Além
do mais, eu prefiro o Caetano a
cantar do que a falar sobre coisas
de que não sabe.
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