São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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JANIO DE FREITAS

Duas carências

Um dos dois maiores obstáculos para o plano de inovações do futuro governo é bem conhecido, o que não chega a torná-lo menos espinhoso. O outro, porém, apenas mostrou uma ponta de dedo que não sugere, nem de longe, a dimensão e a força do monstro.
No primeiro caso estão os interesses que puderam levar sua voracidade ao absurdo, com a liberalidade e o estímulo da política neoliberal, mas não poderiam continuar prevalecendo contra os interesses gerais. O outro dos dois problemas maiores explica-se melhor por duas situações dos últimos dias.
O futuro entra em cena com o projeto Fome Zero. O nome é suficientemente claro no alvo, FOME, e na meta, ZERO, ambos a serem alcançados com a distribuição de cupons de alimentação.
Cupons? Pronto, desandaram as objeções. Logo uma integrante da PUC-SP, Rosa Maria Marques, "uma das maiores especialistas em políticas de proteção social do país", segundo a jornalista Gabriela Athias, ergueu seu argumento contra os cupons e em favor de dinheiro: "é complicado proibir uma família pobre consumir iogurte, chocolate e outras guloseimas infantis apresentadas na TV". Sedução publicitária pela TV em casa onde há fome? Vá lá, com o aparelho provavelmente entre o freezer e o microondas. Ao que foi acrescentado o comentário, não ficou claro se da especialista ou da jornalista, de que o cupom "reduz a autonomia das famílias que poderiam decidir economizar, em determinado mês, para investir em outros bens de consumo". Seria mesmo interessante o hábito de fazer uma poupançazinha, onde o desespero é matar a FOME antes que a FOME mate.
A discussão entre os partidários de dinheiro e os do cupom tornou-se mais relevante do que o projeto de zerar a FOME -um projeto básico de proporcionar o que é mais essencial à vida e, no entanto, falta a entre 6 e 10 milhões de famílias, ou entre 22 milhões e 40 milhões de pessoas.
Tudo isso? Fernando Henrique Cardoso discordou logo: "Começa que não são 40 milhões, porque 90% das crianças estão na escola e têm a merenda escolar". Então está resolvido: esquecidos os idosos da miséria, os que não estão na escola, os adultos em geral dos cafundós da miséria e se a merenda for dada como nutrição diária suficiente para as crianças, está tudo resolvido. Embora se fique sem entender por que o governo Fernando Henrique Cardoso gastou dinheiro com o seu Bolsa-Alimentação e com a publicidade em torno disso.
É óbvio que o número depende dos critérios de aferição. A pesquisa domiciliar emitida em setembro pelo IBGE, instituição oficial, indica que 6,6 milhões de famílias têm ganho total inferior a um salário mínimo (a média seria de R$ 137) e, assim, não podem ter a alimentação minimamente necessária. Estas famílias somariam cerca de 22 milhões de pessoas, considerando-se a média nacional de 3,4 pessoas por família. Mas a prole da pobreza é muito mais alto e, com otimismo, pode-se aceitar 5 pessoas por família, que já totalizariam 33 milhões subalimentados por falta de dinheiro. FOME, em português razoável.
A Organização Mundial de Saúde considera, em vez do ganho familiar, as calorias ingeridas por dia. O número dos carentes já subirá bem além dos 22 milhões. O Instituto Cidadania concluiu que a subnutrição atinge 44 milhões. E o estudo sobre a fome no mundo, que a ONU está realizando, já afirma, por seu relator Jean Ziegler, que a desigualdade social faz com que o Brasil apresente um dos piores índices do mundo: um em cada três brasileiros é desnutrido. Pelo menos 16 milhões de pessoas ingerem menos de 250 calorias por dia, menos de 10% do mínimo referido pela Organização Mundial de Saúde. E este dado esmagador: doenças provocadas pela FOME matam pelo menos 280 crianças com menos de um ano.
E ainda se discute se a comida deve ser dada por intermédio de cupons ou em dinheiro, proporcionar a compra de guloseimas anunciadas ou fazer poupança, como se não fosse urgente, humanamente indispensável, apenas isso: dar comida para matar a FOME. Pode haver mil projetos muito mais completos para atenuar a desigualdade social, mas depois disso: matar a FOME. E o que importa não é saber agora o número exato dos necessitados: é começar a dar-lhes comida para matar a FOME, e continuar aumentado o número de beneficiados até que a FOME chegue a ZERO.
Para isso, Luiz Inácio Lula da Silva pensa em um amplo entendimento social. Convida aí uns cento e tantos para um encontro em que sejam abordadas algumas preliminares. Então, daí saem alguns endinheirados e doutorados com suas observações: "falta agenda para o pacto", a discussão "devia ser mais profunda" e por aí. Mas o encontro tinha o propósito, bem explicitado, de encaminhar discussões que levem à criação de uma agenda, ao tratamento mais aprofundado do acordo em seu futuro conselho, e por aí.
Tudo tão estapafúrdio que é quase cômico, não fosse o caso de FOME. No mínimo de alimentação e no mínimo de racionalidade, quantas carências.

Pausa
Concordo que deveria ser definitiva, mas ainda será só temporária a ausência desta coluna, nos próximos dias.



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