São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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NO PLANALTO

Lula, de espionado a chefe da arapongagem militar

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

FHC franqueou os armários da Esplanada ao PT. Se a gentileza for extensiva às gavetas do Exército, Lula poderia requisitar papéis da "inteligência" militar. Recomenda-se que comece pelo "Relatório Especial de Informações 003".
Foi redigido na gestão do companheiro Itamar Franco. É fruto de bisbilhotice praticada em encontro do PT, de 11 a 13 de junho de 93. Assina-o o general Jaime José Juraszek, então chefe do Centro de Inteligência do Exército.
Moído na disputa com Collor, Lula caminhava para o segundo cadafalso eleitoral. Grávido do real, FHC gestava a moeda que o levaria à Presidência. O relatório 003 imprimiu sobre esse pano de fundo a imagem de um PT revolucionário.
Nas palavras de Juraszek, a sigla experimentaria "uma guinada comportamental, de nível ainda imprevisível, porém, seguramente, mais próxima da ideologia marxista-leninista do que da visão social-democrata (...)" Um detalhe represaria a radicalização: apesar do "sectarismo ideológico reinante", o PT evitaria ações que pudessem "inspirar desconfiança no eleitorado".
Munido das informações colhidas pelos espias, Juraszek tirou as suas próprias confusões. Como profeta, revelou-se ótimo general. Mimetizando o noticiário dos jornais, superfaturou a relevância das alas radicais do PT. E não viu o "Lulinha paz e amor" que se insinuava nos desvãos de um discurso anexado ao relatório confidencial do Exército.
Em meio à defesa de teses como a de dar um chega-pra-lá no FMI, Lula falou à espionada platéia petista sobre a necessidade de "conversar com os empresários", de estabelecer "uma política de alianças", de se aproximar dos "segmentos que não são apenas do PT". Citou, entre outros, o PMDB.
Lendo Juraszek, Lula talvez conclua que em nenhum outro lugar a transição será tão delicada quanto nos porões da chamada Segunda Seção das Forças Armadas. Ali funciona a máquina de espionagem militar. Uma engrenagem que parece tê-lo congelado num quadro com moldura de estilo retrô.
Na década de 90, a cúpula militar concluiu que, submetidas ao ambiente de abertura política, as estratégias de "inteligência" tinham de tomar uma lufada de ar fresco. Os arquivos guardavam muito "lixo". Em 92, iniciou-se um processo de reformulação. Que avança a passos de tartaruga manca.
Sob FHC, houve notável modernização vocabular. Lula, o PT e seus aliados históricos -MST e CUT, por exemplo- passaram da categoria de "subversivos" à de "forças adversas". Preservou-se o tom ideológico que envenena os arquivos. A usina de "lixo" continuou processando textos como o do general Juraszek.
Uma semana antes das eleições produziu-se em São Paulo informe alertando para o "risco" de vitória de Lula. É leitura obrigatória para petistas. Previu-se para 2003 uma onda de "conturbação social". Encolhidas por tática eleitoral, organizações sociais ligadas ao PT voltariam à boca do palco.
As urnas injetaram no submundo da "inteligência" uma perturbadora novidade. O "inimigo" virou comandante-em-chefe. De espionado, Lula converteu-se em cliente preferencial do relatos dos espiões. Sinal dos tempos.
Um estrepitoso burburinho desenrola-se na Segunda Seção. Observadores pessimistas identificam no rumor uma fonte de problemas. Espectadores otimistas acham que o murmúrio prenuncia boas novas. Estaria nascendo, a fórceps, uma "inteligência" apartidária, não-ideologizada.
Realizou-se na semana passada, no Congresso, um seminário sobre o tema. Abriu-o o general Alberto Cardoso, coordenador do Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência). Citou FHC como "grande inspirador da obra de renovação da atividade de inteligência no Brasil", cujas ações pautam-se por "valores éticos, princípios constitucionais e preceitos democráticos".
A prática, porém, desafia a retórica. A Folha revelou, em agosto de 2001, documentos que expõem um serviço de "inteligência" disposto a "arranhar direitos dos cidadãos, numa espécie de arbítrio necessário". Tudo em nome da hipotética manutenção da ordem pública. "Movimentos populares como o MST" foram equiparados ao narcotráfico e ao crime organizado.
Em nota oficial, o Exército prometeu apurar "eventuais transgressões". Comprometeu-se a adotar "imprescindíveis correções". O texto fez aniversário de um ano no último dia 7 de agosto. E não há notícia de "transgressões" apuradas. Tampouco de "correções" adotadas.
Um governo sem serviço de "inteligência" é algo inconcebível. Mas a sobrevivência de uma espionagem enviesada, com direito adquirido à irresponsabilidade, é intolerável. Quem sabe Lula, o "esquerdista", endireita a coisa.



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