São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2000

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ELIO GASPARI

Uma boa turma
Enquanto os sonegadores de impostos e seus protetores esperneiam, a Receita Federal começa a montar a vitrine das gracinhas. Ela demarcou uma lista de mil cidadãos e empresas cuja situação junto ao Imposto de Renda não corresponde à quantidade de dinheiro que movimentam. Já conseguiu a chave do acesso a 250 deles.
Quando essa operação estiver concluída, a patuléia talvez venha a conhecer a identidade de 139 pessoas que não declaram renda mas movimentam, cada uma, mais de R$ 10 milhões. Juntos, movem R$ 28,9 bilhões. Vai saber também quais são as 45 microempresas com receita anual inferior a R$ 120 mil que giram quantias superiores a R$ 100 milhões.

Chamem o Alan
Em 1994, quando Luís Inácio Lula da Silva estava com 40% nas pesquisas, reduziu-se o mandato presidencial de cinco para quatro anos. Disso resultou a anomalia que acabou desembocando na obsessão fracassada de Fernando Collor e bem-sucedida de FFHH pela reeleição.
Agora, com a aliança tucano-pefelê fazendo água e o PT avançando, começa-se a falar em independência do Banco Central. Conversa para boi dormir. O que se quer é cassar à oposição o direito de vir a decidir a política monetária do país. Na primeira maracutaia, Lula poderia ser eleito, desde que se tungasse o tamanho do seu mandato menor. Na segunda, quer-se tungar a qualidade do mandato.
FFHH nunca simpatizou com essa idéia. O que se quer é pressioná-lo em nome do "mercado".
Se o Brasil tem que seguir a política que o mercado determina, por que não se demite o doutor Armínio Fraga nomeando-se ex-ofício o presidente do Federal Reserve Bank para o seu lugar? Se Alan Greenspan assumisse esse lugar, a choldra ficaria livre de pelo menos uma praga: a compulsão que os diretores do BC têm pelo exercício de previsões furadas.

Uma grande história de mar
Saiu em forma de livro um grande desafio para quem gosta de histórias de horror e/ou suspense. Chama-se "No Coração do Mar - A História Real que Inspirou "Moby Dick", de Melville". Seu autor é Nathaniel Philbrick, um pesquisador obsessivo. Diante de seu trabalho, o romance de Herman Melville parece história infantil. Para quem leu a história da baleia ou viu o filme (Gregory Peck no papel do capitão Ahab) pode ficar a impressão de que a história de Philbrick também termina no choque da tripulação do Essex (Pequod no romance) com o malvado bicho branco. De certa maneira, é aí que ela começa.
Recapitulando, sem estragar o prazer da leitura: o Essex saiu de Nantucket (onde hoje está a casa de praia da família Kennedy) em agosto de 1819. Deu a volta na América do Sul caçando baleias. No dia 20 de novembro do ano seguinte estava a 3.000 quilômetros da costa da Colômbia. Foi atacado por um cachalote negro de 25 metros (coisa nunca vista) marcado por cicatrizes. Em dez minutos, com duas cabeçadas, ele destruiu o navio. A narrativa dessa cena toma apenas quatro páginas do livro. Nesse ponto começa a história de Philbrick, toda documentada. Valeu-se inclusive de uma narrativa de um sobrevivente, escrita em 1876 e publicada em 1984.
A tripulação do navio tinha 20 homens, três baleeiras, mantimentos para dois meses, água para 30 dias e o oceano Pacífico pela frente. Podiam escolher dois caminhos: a sudoeste estavam as ilhas Marquesas; a leste, a costa da América do Sul. Com os conhecimentos que tinham, acharam melhor tentar o caminho do leste, pois acreditavam que os selvagens das Marquesas praticavam rituais de antropofagia e homossexualidade. (O livro ilustra o canibalismo temido pelos marinheiros com uma gravura de índios do Rio de Janeiro churrasqueando franceses.)
Philbrick é um craque da narrativa e pesquisou todos os cantos da rota dos náufragos. O livro tem 371 páginas e 50 são ocupadas pelas referências bibliográficas, um prazer à parte. Ora fala como um lobo do mar, ora como um pesquisador das reações humanas à fome e à sede. Essa segunda característica é que torna pesada a barra de seu trabalho. Vinte homens com fome e sede, além de uma razoável falta de sorte, já são desgraça suficiente. Quando começam a comer-se, a conversa é outra. (Não vai aqui nenhuma inconfidência, pois já na página 13 ele conta que dois dos sobreviventes foram encontrados chupando os tutanos dos colegas.)
Bem escrita e magnificamente traduzida por Rubens Figueiredo, a narrativa é seca. O único momento de comprovado altruísmo do episódio coube em três linhas e quem não prestar atenção passa batido. Ainda que tire a fome, é uma leitura que dá sede.
Informação estatística: na última perna da viagem havia 17 homens em três baleeiras. Duas tripulações foram para o canibalismo. A primeira, no 79º dia. O que aconteceu na terceira é uma das curiosidades do caso, talvez um dos mistérios da alma humana.
Dos 20 náufragos, sobreviveram oito. Quando um deles chegou à sua casa, viu que a mulher tivera um filho 16 meses depois de sua partida.

O campeão ainda não está salvo
Os pais de Rui Lopes Viana Filho, medalha de ouro da olimpíada de matemática de Seul, em 1998 escrevem para corrigir e esclarecer alguns pontos do texto aqui publicado na semana passada.
Era injusta, por redondamente errada, a informação segundo a qual o governo não deu importância ao seu êxito. Pelo contrário, fez bonito. FFHH convidou-o para almoçar no Alvorada, em companhia do ministro da Educação, Paulo Renato Souza.
Seus pais atribuem a queda do desempenho de Rui no curso de engenharia da Universidade de São Paulo ao fato de ele ter decidido tentar uma vaga no Massachusetts Institute of Technology: "Foi natural que ele perdesse o interesse no curso da USP e começasse a preparar toda a documentação, que é bastante extensa, para a inscrição na universidade americana".
Ao contrário do que aqui se noticiou, a bolsa que Rui recebeu do MIT não é integral. A anuidade custa US$ 26 mil, e o colégio cobre US$ 12 mil (com pouco menos da metade sob a forma de empréstimo).
A Fundação Estudar, que se interessou pelo caso de Rui, garantiu-lhe US$ 45 mil ao longo dos quatro anos do curso. (Com um compromisso de devolução a partir do dia em que ele entrar no mercado de trabalho.) Esse dinheiro é suficiente para cobrir suas despesas básicas enquanto estuda, estimadas em pouco mais de US$ 1.000 por mês.
Apesar da colaboração do MIT e da Estudar, as contas de Rui ainda estão amargas. Isso porque precisa pagar uma parte da anuidade (US$ 14 mil) e essa despesa é muito alta para o orçamento de sua família.
Quando alunos como Rui podem ter seus estudos financiados por meio de empréstimos, é quase impossível entender que lhes seja difícil conseguir alguns milhares de dólares. Até porque, uma vez devolvidos, servirão para ajudar outros jovens talentosos.

ENTREVISTA

Raul Cutait
(50 anos, diretor do centro de oncologia do Hospital Sírio Libanês de São Paulo)
Até que ponto a maneira aberta com que o governador Mário Covas está enfrentando o câncer poderá servir de exemplo para outros doentes e para outras equipes médicas?
Sua coragem e sinceridade vão influenciar milhares de pessoas. Qualquer doença grave tende a disparar um mecanismo de autodefesa no paciente, na família e até nos médicos. Evitam-se definições claras, até mesmo a palavra câncer. O doente fica com uma espécie de vergonha ou medo, a família o acompanha e constrói-se uma relação muito ruim. Os próprios médicos podem ter dificuldade para lidar com situações como essas. Covas está ensinando à população e até mesmo aos médicos. Desde o primeiro momento ele quis saber tudo, discutir tudo e contar tudo. Essa costuma ser a melhor atitude.
Há casos em que o doente, a família, ou ambos, preferem agir de forma diferente. O que os médicos podem fazer para criar um ambiente que permita mudar esse comportamento?
Se o doente não quer falar do assunto, você tem que respeitar, mas as coisas nunca são tão pretas ou brancas. Há sempre um espaço para se construir uma relação sincera. Nós já estamos saindo da cultura do silêncio. Os médicos devem estimular o sentimento de partilha. Devem mostrar que há uma briga pela frente e que o doente, a família e eles próprios precisam estar juntos. É trabalhoso e pode ser sofrido, mas é o melhor jeito.
Como fica a idéia de poupar sofrimentos? Tanto da família querendo poupar o doente quanto do doente querendo poupar a família?
Se fosse possível criar uma situação na qual não se fala no assunto e as coisas transcorrem de maneira adequada, isso seria uma alternativa. Infelizmente, você pensa que está poupando quando, na realidade, com omissões aqui e desconversas ali, cria-se uma situação de fingimento. Ela asfixia as emoções. Novamente, não adianta supor que haja uma conduta de manual. O doente e a família precisam ver no médico um parceiro e não apenas um técnico. Os pacientes precisam de suas forças internas. Condutas como a de Covas estimulam as pessoas a irem buscá-las.


O Supremo estragou a festa da informática
É possível que o Supremo Tribunal Federal tenha batido com mão pesada quando suspendeu as isenções tributárias que cevam os fabricantes de computadores e equipamentos de telecomunicações. Esse "incentivo" custa à Viúva algo como R$ 1 bilhão, mas produz empregos e, no mínimo, meio quilo de tecnologia nacional. Se a sentença servir para que se discuta melhor essa festa, já será muita coisa.
Apanhado de surpresa, o governo deverá descobrir uma fórmula que lhe permita cobrar impostos capazes agradar tanto a indústria paulista quanto a da Zona Franca de Manaus. Eles não poderão ficar tão altos que estimulem o contrabando, nem tão baixos a ponto de permitir que os contribuintes comprem seus equipamentos no exterior.
A turma da informática escreveu uma das piores páginas da história industrial brasileira. Aliada a coronéis do SNI que pretendiam fabricar uma bomba atômica, impôs à choldra uma reserva de mercado que infelicitou a produtividade da economia brasileira. Tem gente que se esqueceu, mas era mais fácil entrar no Brasil com uma metralhadora do que com um computador. Não havia alíquota alta. Era simplesmente proibido trazer as máquinas. A ignorância, associada à esperteza, sustentava que o Brasil haveria de desenvolver uma tecnologia nacional na produção de computadores. Produziu cartórios.
Os benefícios tributários foram reduzidos e os preços melhoraram, mas apesar disso obriga-se os brasileiros a pagar altas taxas para importar computadores. Vinte anos não foram suficientes para permitir a completa abertura do mercado e do jeito que vão as coisas, outros 20 também não bastarão.
Triste situação. O empresariado brasileiro disputa a rentabilidade de suas fábricas nos corredores de Brasília, pedindo menos impostos e defendendo barreiras, Enquanto isso, Steve Jobs, um dos gênios do empresariado americano neste século, acaba de anunciar que a Apple fechará o trimestre com um prejuízo de pelo menos US$ 225 milhões. Não botou a culpa no governo nem pediu incentivos. Simplesmente reconheceu que a empresa levou uma surra. Deu-se mal por problemas internos, pela queda geral das vendas e pelo desaquecimento da economia americana: "Nós não estávamos preparados para sermos atingidos por três grandes problemas ao mesmo tempo. Eu não me orgulho disso".
A Apple tomou uma pancada nas vendas, entre outros motivos, porque lançou um novo modelo de máquina (o Cubo), que foi visto pelo mercado como uma bijuteria industrial, daquelas que são bonitas na casa dos outros.
Não há registro de empresário nacional reconhecendo suas dificuldades dessa maneira. Também não há registro de empresário nacional que tenha feito a carreira de Jobs, inventando o conceito de computador pessoal. Quando ele tem boas idéias, ganha dinheiro. Quando elas são ruins, perde. É o jogo jogado, que por cá não se joga.


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