São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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JANIO DE FREITAS

Dúvidas atômicas

A inspeção internacional que o Brasil se recusa a admitir na usina de enriquecimento de urânio, em Resende, é um problema mais complicado do que aparenta. Não se resolverá com a simples invocação da soberania e de propósitos pacíficos, como faz o governo, ou com a admissão das inspeções plenas também por serem pacíficas as finalidades da energia nuclear brasileira, como determina a Constituição.
O problema começa por exigir mais sutileza do que a utilizada até aqui, pelos ministérios de Relações Exteriores e da Defesa e pela Marinha, porque se trata de um dos assuntos a que a opinião pública ocidental é mais sensível. O estilo "não cedemos e pronto" pode desencadear uma onda anti-Brasil que não haveria como neutralizar. E ainda traria o risco de aceitação final das inspeções, com sabor de capitulação. Quem não é potência tem de ser pelo menos sutil.
No plano de uma definição política ou pessoal, entre as várias opções possíveis, o problema não é menos difícil. O envolvimento dos militares brasileiros com energia nuclear começou e se desenvolveu absolutamente à margem do conhecimento da sociedade. Já por aí, uma atividade de gravíssimas implicações praticada em contraste com a clareza implícita na determinação constitucional de finalidades exclusivamente pacíficas.
A certa altura, descobriu-se a existência de pesquisa da Marinha para propulsão nuclear de submarinos, o que não cabe nas exigidas finalidades pacíficas. Até hoje não foi dada à sociedade, nem mesmo ao Congresso, uma explicação para os buracos feitos na região da serra do Cachimbo, área sob controle da Aeronáutica, com características dos poços para explosões atômicas subterrâneas, como foi revelado há mais de 15 anos pela Folha em trabalho de Elvira Lobato. Também naqueles finais de anos 80, a Folha revelou a manipulação de grandes verbas secretas pela Comissão Nacional de Energia Nuclear, por intermédio de uma misteriosa "conta D" descoberta pela repórter Tânia Malheiros.
De minha parte, tenho dúvida de que a parte civil do governo, aí incluída a Presidência da República, tenha conhecimento integral dos projetos e atividades brasileiros em energia nuclear. Um governo ao qual os militares recusam indicar onde estão cadáveres enterrados há mais de 30 anos, e não adota uma resposta de autoridade, não demonstra muito crédito para segredos bélicos.
A exigência de inspeção plena da usina, havendo já os outros controles a que tratados obrigam o Brasil, parece exorbitante. Além disso, pode ser verdadeiro tudo o que está dito sobre os propósitos pacíficos das atividades brasileiras atuais com urânio. Nem por isso é sequer arranhada esta verdade histórica: a junção de ciência e militar jamais trouxe algum bem para a humanidade.



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