São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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MEMÓRIA

Sociólogo, que morreu dia 4, afirmou em sua última entrevista que ação terrorista é "revolucionária" e que o governo é um desastre

Para Ianni, Lula frustra seu papel histórico

CLÓVIS SAINT CLAIR
FREE-LANCE PARA A FOLHA

A entrevista que segue, cujos trechos a Folha publica com exclusividade, foi a última concedida pelo sociólogo Octavio Ianni antes de morrer, no domingo passado, aos 77 anos.
Há cerca de três semanas, o professor emérito da USP e da Unicamp falou sobre globalização e seus efeitos nos países periféricos, seu foco de interesse nos últimos anos e tema de "Capitalismo, Violência e Terrorismo" (Editora Record, 2004), que chega às livrarias nos próximos dias.
Na análise do sociólogo, os atentados de 11 de setembro, nos EUA, e de 11 de março, em Madri, são "ações revolucionárias", resposta à globalização que avança "a ferro e fogo" no mundo árabe.
Ianni, integrante da geração da sociologia brasileira que redimensionou estudos sobre escravidão e desenvolvimento (como em "As Metamorfoses do Escravo", de 1962, e "Industrialização e Desenvolvimento Social no Brasil", de 1963), fez um diagnóstico duro do governo petista e da esquerda. "O governo Lula está demonstrando que não entendeu nada."
Atacou a atuação do presidente como líder mundial -um "blefe"- e o discurso da esquerda -"anacrônico". Para ele, Lula frusta expectativas ao não "desempenhar o seu papel histórico".

Folha - O 11 de Setembro marcou o início de uma nova era na geopolítica mundial. O que dizer do atentado de 11 de março na Espanha?
Octavio Ianni - A inquietação social, política e cultural é intensa e pode resultar em protestos espetaculares. Classificar os atentados como loucura terrorista é simplificar o problema. Os atentados têm raízes nas condições sociais extremamente difíceis experimentadas por povos agredidos pelas corporações transnacionais e que estão sendo induzidos a entrar na globalização a ferro e fogo. O ataque de 11 de setembro atingiu dois pilares simbólicos dos EUA: o militar, com o ataque ao Pentágono, e o financeiro, no ataque às torres gêmeas.
O governo da Espanha entrou numa guerra indo de encontro à opinião pública. O mundo árabe, ao contrário do que a mídia propaga, corresponde a um outro modo de ser e o ataque no dia 11 de março foi uma manifestação de protesto à adesão inexplicável da Espanha à guerra no Iraque. Ambos atentados foram ações revolucionárias. O que importa numa ação dessas não são as intenções dos agentes. Quando algumas pessoas derrubaram os portões da Bastilha queriam apenas protestar contra o despotismo. Ninguém imaginava que estava fazendo a revolução.

Folha - As reações aos ataques nos EUA e na Espanha foram diferentes. Por quê?
Ianni - Porque os europeus viram que eles todos podem ser alvo desse tipo de ação terrorista. Daí manifestar solidariedade a um país que devia ser integrado a União Européia e que está trabalhando justamente para rachar a UE, usando dessa oposição justamente para fazer o jogo da geopolítica norte-americana numa tentativa de se beneficiar de alguma maneira com os EUA. Nesse sentido, os atentados não deixaram de ser um aviso à Inglaterra.

Folha - A violência no Brasil produz vítimas em escala de guerra. Por que essa estatística provoca menos comoção que muitas guerras a quilômetros daqui?
Ianni - Faz parte da ideologia dos setores dominantes minimizar, porque isso prejudica a imagem do país e atrapalha os negócios de grandes companhias, a quem a mídia está acoplada. Uma leitura dos jornais do Rio e São Paulo revela que a mídia trabalha pela criminalização da sociedade civil. Quem lê fica com a sensação de que a sociedade está envenenada, mas as matérias não vão à raiz. Daí vem essa loucura, o boom da indústria de segurança.

Folha - A desigualdade é apontada como fator da violência. O governo atua para resolvê-lo?
Ianni - O governo Lula está demonstrando que não entendeu nada. Ele tinha o compromisso de inaugurar uma nova orientação. Só que para fazer isso é preciso que se reflita sobre os problemas reais. Foi um governo eleito com expectativas excepcionais, mas que não está conseguindo desempenhar seu papel na história. Descambou para uma retórica vazia, que consiste em pronunciamentos inflamados, mas inócuos.

Folha - A política econômica é criticada, mesmo no governo. É possível deixar de se subordinar ao FMI?
Ianni - A Índia e a China são exemplo de como aderir ao globalismo sem abdicar de um projeto nacional, sem abrir mão de participar do centro decisório. No Brasil, isso não deu certo porque tanto os militares quanto os civis que os sucederam entregaram o poder decisório a grandes conglomerados transnacionais. No Brasil, não há mais chances de se estabelecer um projeto nacional. É como no teatro ou no cinema. Em muitos casos os atores simplesmente não estão à altura dos personagens que deveriam encarnar.

Folha - Como o sr. vê o esforço do Lula para levar o Brasil à liderança na América Latina? Trata-se de um projeto nacional viável?
Ianni - Trata-se de fabricar manchetes. Aliás, ele está assessorado por quem? Brasília é hoje a nave dos insensatos. Estão todos descolados da história. Mas não é só no Brasil. Na Argentina também. Nem o Lula nem o Kirchner têm condições de levar seus países a executar um projeto nacional.

Folha - Lula foi recebido pela comunidade internacional como um neo-socialista capaz de produzir o globalismo de baixo para cima. Por que goza dessa imagem ?
Ianni - A comunidade internacional sempre blefou a respeito desse papel do Lula. Estão todos fazendo jogo de cena, o que de certo modo anestesia a opinião pública. Ou alguém acredita que o Schroeder ou o Chirac reconhecem esse papel no Lula? Só se fossem tontos! Estão blefando, claro. E blefam porque o Lula está fazendo o jogo geopolítico deles. É difícil dizer que Lula ou o Kirchner são presidentes. São, no máximo, administradores de províncias no mundo globalizado, fantoches.

Folha - A que significa a queda da popularidade de Lula?
Ianni - Lula é um desastre. A frustração que está produzindo na opinião pública é séria e profunda. Há pouco tempo o [ministro] José Dirceu disse que o que vão fazer com a universidade pública será mais sensacional do que fizeram na Previdência! Ao que tudo indica, vão acatar as diretrizes educacionais do Banco Mundial...

Folha - Como fica a esquerda neste momento de descrédito?
Ianni - A esquerda está demorando para entender a globalização. Eles são patriotas, mas são de um patriotismo que se confunde com um nacionalismo anacrônico. A esquerda precisa ser internacionalista. Eles não lêem "The Economist", não sabem o que está acontecendo por trás das decisões do mercado. A esquerda deve caminhar para uma inteligência lúcida do que é o processo e procurar estabelecer alianças com as classes subalternas, buscando construir um globalismo de baixo para cima. Mas eles preferem usar o palanque do Fórum Social para proferir discursos comprometidos com um nacionalismo anacrônico e ultrapassado.


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