São Paulo, sexta-feira, 11 de junho de 2004

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BRASIL COM "Z"

Para Timothy J. Power, governo do PT corre o risco de terminar sem conseguir se diferenciar da gestão FHC

Falta marca própria a Lula, diz brasilianista

Felipe Varanda/Folha Imagem
Timothy Power, que participa de encontro de brasilianistas no Rio


PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO

O governo Luiz Inácio Lula da Silva se estendeu demais na preocupação exclusiva de ganhar a confiança dos mercados globais e pode terminar sem identidade própria. Deixou a idéia conflituosa de redistribuição para tentar ajudar os mais pobres sem tirar dos mais ricos.
A avaliação é do brasilianista Timothy J. Power, 41, coordenador dos cursos de pós-graduação em ciência política da Universidade Internacional da Flórida e, a partir de domingo, presidente da Brasa (Brazilian Studies Association), uma associação sediada nos Estados Unidos e formada por acadêmicos de diversos países que se dedicam a estudar o Brasil.
"Se o PT perder as eleições deste ano em capitais importantes, a renascença do governo pode não se concretizar. Lula precisa agora lançar duas ou três iniciativas que o diferenciem do governo anterior de maneira clara", diz Power.
Em sua visão, o presidente brasileiro abandonou a idéia marxista de guerra de classes e optou pela luta nas políticas públicas.
"O discurso de Lula em 1989 era: "se eu ganho, alguém tem de perder". Era um discurso redistributivo. Hoje, em vez de identificar a miséria relativa, identifica a miséria absoluta. Ou seja, vamos enfatizar a salvação dos pobres lá embaixo, mas isso não implica tirar nada de ninguém."
Power terá editada neste ano a versão em português de seu livro "The Political Right in Postauthoritarian Brasil: Elites, Institutions and Democratization" [A Política Conservadora no Brasil Pós-Autoritarismo: Elites, Instituições e Democratização], lançado em 2000 nos EUA.
Na PUC do Rio, onde a Brasa realiza seu sétimo congresso, o primeiro no Brasil, Power tem exibido bom humor. Fez piada ao comparar a crise entre EUA e Brasil em razão da identificação de viajantes que chegam aos dois países: "O Palácio do Planalto tem filas como a dos aeroportos, onde se dividem brasileiros e estrangeiros. Na Casa Civil, a fila é entre petistas e oportunistas. Estes últimos é que deveriam ser fichados e fotografados".
A seguir, trechos da entrevista:

Folha - Como o sr. avalia o governo Lula até aqui?
Timothy J. Power
- O desempenho de Lula tem tido uma série de surpresas e paradoxos. Ninguém esperava a adoção de uma política econômica de continuidade à do governo anterior. Por causa do acordo com o FMI, esperava-se alguma continuidade, mas não tamanha no que diz respeito à disciplina monetária do Banco Central. Outra surpresa foi o fato de Lula ter conseguido construir uma maioria tão grande no Congresso. Sempre se imaginou que as relações do Legislativo com o Executivo sob um governo do PT fossem se pautar de maneira diferente. Avaliava-se que seria um governo com 30% das cadeiras. Mas Lula se tornou um presidente como Fernando Henrique, com 70% da base do Congresso. Surpreendem as semelhanças com o governo anterior. Na campanha, os petistas prometeram pôr fim a uma era, mas essa era se estende além do que planejavam.

Folha - Isso se deve a quê?
Power
- Pode ser atribuído às necessidades impostas pelo mercado financeiro internacional e ao acordo com o FMI, negociado em agosto de 2002 e com o qual todos os principais candidatos a presidente naquela época se comprometeram. Ao declarar apoio a esse acordo, Lula vestiu uma camisa-de-força que o deixará imobilizado até o fim deste governo.

Folha - Quais são os paradoxos do governo Lula?
Power
- Sempre acreditei que o governo pretendia se lançar em duas fases. Na primeira, com duração de três a seis meses, teria de mostrar-se confiável aos mercados. Essa fase se prorrogou demais. O governo deveria ter sido relançado, com novas iniciativas que marcassem a segunda fase, na qual afirmaria sua identidade. Essa refundação deveria ter ocorrido em meados do primeiro ano de governo. A idéia de relançamento, de criação de identidade própria, não se concretizou e estamos correndo o risco de que não ocorra. Se o PT perder as eleições deste ano em capitais importantes, a renascença do governo pode não se concretizar. Lula precisa agora lançar duas ou três iniciativas que o diferenciem do governo anterior. Se tiver muita sorte, a retomada da economia pode lhe dar uma solução passiva, sem que o governo faça nada. O crescimento econômico pode salvá-lo. Veja o exemplo do Néstor Kirchner, na Argentina: ele não fez absolutamente nada. Apenas pegou carona na retomada do crescimento. O ciclo econômico lhe deu popularidade. Lula pode ter a mesma sorte, só que o buraco da Argentina foi muito mais profundo, o que facilita a retomada. O Brasil corre o risco de ter uma "jobless recovery", a volta do crescimento econômico sem a criação de empregos. A economia cresce, mas, com o aumento da produtividade, não absorve mais mão-de-obra. O que levaria àquela frase: a economia está bem, mas o povo vai mal.

Folha - O que o governo precisaria fazer exatamente?
Power
- A principal questão para o renascimento do governo tem de ser uma iniciativa relacionada com o emprego. Só assim Lula pode lucrar politicamente com a retomada do crescimento. Não pode ser acidentalmente.

Folha - Em que Lula mudou?
Power
- O discurso de Lula em 1989 era: "se eu ganho, alguém tem de perder". Era um discurso redistributivo. Mas hoje o que faz ele: a iniciativa do Fome Zero não é redistributiva. Em vez de identificar a miséria relativa, identifica a miséria absoluta. Ou seja, vamos enfatizar a salvação dos pobres lá embaixo, mas isso não implica tirar nada de ninguém. É um discurso bem diferente. A palavra burguesia sumiu do discurso. Ele trocou a guerra de classes pela guerra de políticas públicas. É um avanço, porque prega soluções em vez de conflitos.

Folha - É o abrandamento comum à esquerda no poder?
Power
- Essa nova política do PT implicará o distanciamento dos movimentos sociais. Os partidos de esquerda normalmente têm laços fortes com movimentos sociais, ONGs e sindicatos. Mas, quando chegam ao governo, aprendem que não têm como dizer sim para todos.

Folha - Que efeito isso trará?
Power
- Isso tem um efeito sobre a imagem do PT. Na oposição, podia alardear sua "pureza ideológica". Quando chega ao governo, tem de cortar certos laços e começa a ser visto como um partido como outro qualquer. Isso implica um perigo para o PT. De modo geral, os partidos no Brasil não têm respaldo popular. Antes o PT se dizia um partido que não integrava como os outros o sistema partidário. Poder se dizer fora do sistema era uma vantagem. Agora passou a integrá-lo plenamente, o que o iguala aos demais partidos.

Folha - O sr. já disse que Lula é um "presidente Teflon", que críticas ao governo não aderem à sua imagem pessoal. Seria em razão do personalismo?
Power
- Não diria uma questão de personalismo, mas de personalidade, que é outra coisa. Lula é o primeiro presidente com raízes populares. É impossível não gostar dele por razões pessoais. O mesmo ocorria com o presidente Ronald Reagan, que morreu na semana passada. Sempre fui oposição ao governo Reagan, mas reconhecia nele características típicas do americano: otimismo, generosidade, contato com as pessoas. Isso possibilitou a separação da imagem da pessoa da de suas políticas públicas.

Folha - O PT sempre tentou obter vantagem eleitoral com seu discurso anticorrupção. Essa retórica foi afetada pelas recentes acusações de desvios?
Power
- Quando Lula foi eleito, havia as seguintes colunas de legitimidade: 1) seu desempenho pessoal; 2) sua força interna no PT; 3) sua promessa de mudar o modelo econômico; 4) a imagem do PT de partido ético, sem manchas.
As primeiras duas colunas se mantêm intactas, as duas últimas nem tanto. É normal que um partido no governo passe a enfrentar manchetes negativas e ser visto como outro partido qualquer.


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