São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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JANIO DE FREITAS

Obrigado, Lula

Raros são os momentos em que se tem motivos induvidosos, e sem risco de arrependimento, para ser agradecido a um presidente. A obrigação de todo presidente eleito é fazer-nos agradecidos todos os dias, mas da obrigação ao fazer passa uma infinidade que começa no caráter e termina na história.
De Lula, já não posso dizer que haja faltado sempre com sua obrigação. Ainda que por um só gesto, não importa, passo a dever-lhe gratidão. Uma das dádivas mais valorosas e difíceis da vida é o consolo nas aflições, e foi consolo que Lula me ofereceu. Espontâneo, gratuito, sem a espera da retribuição que não tenho para dar. Consolo que Lula, com a reconhecida inteligência, pôs sob a forma de poucas palavras, que até se assemelham a uma humilde confissão:
"Não consigo compreender por que alguém vai ao banco tirar dinheiro com um cartão de crédito para pagar 12% de juros ao mês. Não deveria ir e, se não fosse, acabaria com isso, [com esse] sistema financeiro a juros escorchantes".
Muito claro: o presidente que vem do nível mais carente do povo não consegue compreender, ou não compreende mais, que a necessidade force milhões a se submeterem a variadas formas de agiotagem. Se o presidente não compreende razões tão simples, como posso, na condição vulgar de presidido, compreender que o presidente nada faça para coibir as variadas formas de agiotagem que exploram os já necessitados?
Tenho me afligido com a frustrante suposição de que presidente e governo servissem, entre outros fins, para aplicar medidas capazes de tornar menos bestiais e mais justos os modos todos de relações, humanas e materiais, na sociedade em geral. Não conseguia compreender o governo Lula e muito menos o próprio Lula.
Um caso real é sempre útil para melhorar a clareza. Não pude compreender a compra de um avião especial por Lula, o que me pareceu imoralidade pessoal e administrativa extrema. Quem vive falando, aqui e lá fora, na fome de milhões, e governa um país com mais de 40 milhões em estado de penúria, só por vaidade desatinada e irresponsabilidade ilimitada gastaria mais de R$ 170 milhões com um avião, como poucos chefes de países ricos têm.
Ainda na sexta-feira, não pude compreender que os senadores e deputados da Comissão Mista de Orçamento aprovassem o crédito suplementar de R$ 50,8 milhões para pagamento da terceira parcela do avião, já em atraso por falta de dinheiro disponível no governo. Insistia, na minha cabeça, a lembrança do gasto a cada dia, com os juros pelo atraso desde o dia 4, do equivalente a um mês do Bolsa-Família para 42 famílias (conta, já citada aqui, do repórter Evandro Éboli). Só nos oito dias de atraso até hoje, os juros consomem um mês de Bolsa-Família para 336 famílias.
Já não me sinto sozinho na incapacidade de compreender o mais simples e evidente. Como a transformação de Lula.


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