São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI

O escravocrata perdeu em 2003, vence em 2004

Trabalho escravo é uma coisa a respeito da qual as pessoas estão dispostas a fazer qualquer coisa, menos ler sobre ela, sobretudo num domingo. Paciência. Há hoje 25 mil brasileiros espalhados nas matas, trabalhando em condições de escravidão, vigiados por pistoleiros, amarrados em dívidas. Esse cidadão pode ser descrito assim: tem em torno de 30 anos, é analfabeto e está a mais de 500 quilômetros de casa. Trabalha nos roçados, desmata florestas, corta cana e levanta cercas. Ele chega à fazenda que o contratou devendo algo como R$ 200 e é obrigado a gastar outros R$ 200 com roupas e material de trabalho, inclusive as botinas. Todas as compras são feitas no armazém do fazendeiro. Em geral esse brasileiro trabalha seis meses pensando em voltar à sua cidade com uns R$ 300 no bolso. Isso quando dá tudo certo. Quando dá errado volta sem nada. Às vezes fugido, às vezes espancado. Os mortos ficam.
Os atos e os números do combate a essa praga são um exemplo da marcha do PT Federal em direção ao atraso. Em março de 2003 o companheiro Lula lançou no Palácio do Planalto o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e dias depois ganhou seu primeiro artigo elogioso no "New York Times", escrito pelo repórter Larry Rohter, aquele que ele quis expulsar do Brasil.
Lula varreu uma burocracia comprometida com os fazendeiros (os fiscais estavam proibidos de passar ao Ministério Público os autos de infração) e valorizou a atividade heróica do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. Trata-se de um grupo de 30 servidores que, ajudado pela Polícia Federal, mudou o rosto do Brasil na questão do trabalho escravo. Mais: remeteu ao Ministério Público 600 processos que o tucanato deixava nos armários. Em novembro passado o governo divulgou uma "Lista Suja" com os nomes de 52 empresas comprovadamente receptadoras de escravos. Elas perderam o acesso a financiamentos de fundos constitucionais.
Em apenas um ano resgataram-se 5.100 trabalhadores mantidos como escravos em fazendas. Foi um número superior ao do total de resgates nos dez anos anteriores. Além disso, o governo comprometeu-se com a aprovação de uma emenda constitucional destinada a permitir o confisco das propriedades onde fossem encontrados brasileiros em regime servil.
Um governo com semelhante desempenho incomoda fazendeiros e molesta a bancada ruralista que hoje faz parte da base de apoio dos comissários. O primeiro semestre de 2004 acabou, e o número de trabalhadores resgatados ficou em 637. É verdade que houve uma greve de três meses da Polícia Federal, mas parece difícil que Lula consiga ultrapassar os 2.306 resgates de FFHH em 2002. Regredirá. Desde maio os companheiros devem a divulgação da nova "Lista Suja". Ela está engavetada, com 49 nomes. A Petrobras continua comprando álcool de usinas metidas com escravidão. Seria divertido criar um adesivo da BR informando: "Álcool produzido por trabalho escravo na Usina Santa Cruz, em Campos".
O período legislativo está acabando, e o presidente da Câmara, deputado João Paulo Cunha, não colocou em votação a emenda constitucional que toma as terras dos escravocratas, já aprovada no Senado. A emenda não foi votada porque João Paulo e o governo não querem hostilizar a bancada ruralista (onde o núcleo escravista é uma sublegenda). Quem fala com o deputado fica com a impressão de que a responsabilidade é do comissário José Dirceu. Falso: o responsável é o presidente da Câmara.
Os comissários deviam aprender a lição. Toda votação que tunga o andar de baixo, como a do salário mínimo, anda depressa. Toda votação que incomoda o andar de cima dorme na gaveta.

Um grande livro do tamanho de um enorme problema

Saiu um daqueles livros que ensinam aos brasileiros o que é o Brasil. Chama-se "Pisando Fora da Própria Sombra - A Escravidão por Dívida no Brasil Contemporâneo", do padre-professor Ricardo Rezende Figueira (com fotografias de João Roberto Ripper). Ele tem 52 anos, 20 de militância na Pastoral da Terra na Amazônia, fez mais de cem entrevistas e tirou de dentro da floresta um magistral retrato da escravidão dos brasileiros do século 20. O mundo de traficantes chamados de Luiz Bang Bang, Curiango ou Chicô. Uma hierarquia violenta, na qual há peões arrebanhados por gatos e alugados a fazendeiros, fugidos e recapturados por pistoleiros ou policiais.
Rezende descreve os mecanismos da escravidão com a minúcia de um relojoeiro. É econômico nos adjetivos e blindou o seu trabalho contra lendas. Sempre que se fala em escravidão no século 21 alguém se pergunta como é que uma coisa dessas pode existir. O professor mostra como existe e como continuará existindo se ninguém fizer nada. A privação da liberdade, o medo e a violência são mostrados com uma dolorosa lógica. Seu passeio pelo mundo do medo valendo-se dos personagens de Guimarães Rosa é uma homenagem ao estilo.
No coração do livro de Rezende está a demonstração de que o fazendeiro e os gatos fazem a cabeça do escravo. Ele acredita que deve dinheiro no barracão, tem de pagar, pois não é decente fugir. A fuga (que o fazendeiro chama de calote) é moralmente condenável.
Não é Rezende quem diz isso, mas lendo-o percebe-se que os escravos das fazendas brasileiras padecem da Síndrome de Lula-Palocci. Eles também acreditam que não há outro jeito senão pagar.

O governo quer o PPP, a Pilhagem da Poupança da Patuléia

Para o bem de todos e felicidade geral da nação, o senador Tasso Jereissati conseguiu atolar o projeto que cria as PPP. Na denominação oficial a sigla significa Parceria Público-Privada. Em tradução livre pode ser chamada de Pilhagem da Poupança da Patuléia.
A idéia é simples. Um exemplo: o governo resolve fazer uma estrada, chama um empreiteiro, ou o contrário, o empreiteiro resolve ganhar um dinheiro e chama o governo. Os dois assinam um contrato: a Viúva subsidia os juros do financiamento necessário para a obra, concede aos interessados a exploração do pedágio e garante a taxa de rentabilidade do negócio. Depois do tucanato ter vendido as estradas existentes, o companheiro Lula quer vender as estradas inexistentes, a necessidade da patuléia de usá-las. É a privataria do Brasil virtual.
São muitos os aspectos tenebrosos do projeto da PPP e seria uma dádiva se Lula presidisse uma reunião de seus técnicos com parlamentares oposicionistas de forma que ele e os demais interessados discutissem o projeto, obrigando todos a demonstrar completo conhecimento de seu texto.
Do jeito que está o projeto, um Conselho Gestor composto pelo chefe do Gabinete Civil e pelos ministros da Fazenda e do Planejamento tomará todas as decisões da PPP. O triunvirato terá poder para dizer que obra deve ser feita, onde ela deve ser feita, quem deve fazê-la, qual o subsídio financeiro que será dado ao empreiteiro e qual a garantia de lucro futuro. Vai às favas a Lei de Responsabilidade Fiscal, pois o trio maravilhoso produzirá dívidas disfarçadas. Vai ao demônio que a carregue a Lei das Licitações, porque a trinca escolherá os empreiteiros de sua preferência. Além disso, os empreiteiros da PPP terão prioridade no recebimento de contas. Ou seja: quem trabalhar de acordo com as regras ganhará filas de espera.
Na Roma Antiga houve dois triunviratos. No primeiro, dançaram Pompeu e Crasso. No segundo, fritaram-se Marco Antonio e Lépido. Desde então o mundo sabe que triunvirato é aquele negócio no qual um acaba mandando. (Cesar no primeiro e Otávio no segundo.)
O supercomissário que se está gerando no Planalto terá mais poderes do que qualquer superministro da história nacional. Nenhum ditador, presidente ou czar econômico teve esse poder. Nem os dois imperadores. Talvez a comparação só possa ser feita com o marquês de Pombal (1699-1784). Não é consolo, mas em 1777 o doutor foi expulso da corte e teve um horrível fim de vida.

O mico de Ciccillo

O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo entrou para a história do mecenato mundial. Na década de 1960, o colecionador Francisco Matarazzo Sobrinho (Edson Celulari em "Um Só Coração") doou perto de 500 obras de arte à USP, enriquecendo o núcleo do que viria a ser um dos melhores museus do país. Para ficar nos clássicos, um auto-retrato de Modigliani, um Picasso e o magnífico cavalo de bronze do italiano Marino Marini. A doação de Ciccillo Matarazzo foi coisa de uns US$ 100 milhões.
Acaba de sair uma luxuosa edição bilíngüe do acervo do MAC. Foi organizado ao tempo em que ele era dirigido pelo professor José Teixeira Coelho. Tem 312 páginas, seis textos e 220 reproduções, cada uma com uma pequena ficha. Nenhuma delas faz a caridade de informar aos leitores o nome do doador.
Ciccillo ganhou três referências, uma de passagem e duas anexas às fichas. Sua mulher, Yolanda Penteado (Ana Paula Arósio), uma. O professor Teixeira Coelho tem sete referências e assina dois artigos, narrando os esforços e as virtudes de sua administração.
Ao contrário do pessoal que incentiva a cultura recebendo lascas tributárias, com direito a artigos no livro, Ciccillo e Yolanda deram a coleção ao público sem receber nada. O livro é uma peça de colecionador. Não deve haver no mundo um caso semelhante de apropriação da filantropia pela burocracia.

O cartel do privata

O Funcef, fundo de pensão dos funcionários da Caixa, botou algumas centenas de milhões de reais na ferrovia Novoeste. Os estrategas do BNDES estão em vias de empatar outro ervanário (coisa de R$ 500 milhões), no que foi uma das piores privatarias do tucanato. Tanto o fundo como o banco merecem ser informados do seguinte:
A Brasil Ferrovias, dona da Novoeste e de duas outras concessões, está pedindo à Ferrovia Centro Atlântica, da Vale do Rio Doce, que não faça convites profissionais aos seus funcionários. Queixa-se de que isso tem acontecido. Coisa do tempo da Casa Grande: o coronel Elias pede ao coronel Thiers que não convide carcamanos de sua fazenda para trabalhar nas colheitas.
Divertido o pessoal da privataria. Primeiro mandam embora cerca de 500 trabalhadores numa só concessão. Depois pagam R$ 100 mil mensais (por baixo) a um presidente e não honram os pagamentos que contrataram com a Viúva (devem R$ 120 milhões pelo arrendamento da malha). Como lhes parece pouco, julgam-se com poderes para cartelizar relações trabalhistas.
O doutor Carlos Lessa, presidente do BNDES, certamente não sabe disso. Na qualidade de potencial padroeiro da reestruturação da privataria tucana, deveria lembrar ao pessoal da Brasil Ferrovias que a princesa Isabel assinou a lei de 13 de maio de 1888 no prédio do Paço, a poucos quarteirões do largo da Carioca, onde funciona o velho e bom BNDES.


Texto Anterior: Saiba mais: Massacre ocorreu em desobstrução de estrada pela PM
Próximo Texto: Toda mídia - Nelson de Sá: Chico e Lula
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.