São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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ELIO GASPARI

Serra seguiu a norma: muita banha, pouca carne

Divulgado o programa de José Serra, verifica-se que o eleitor está numa sinuca. Muita gordura e pouca carne os males dos candidatos são. Sempre aparece alguém dizendo que não se deve dar atenção a programa de candidato. Ora, se nem no programa se deve acreditar, vai-se acreditar em quê?
Lula apresentou um conjunto de estudos que formam muito mais um novo projeto de vida do que um programa de administração. Mostra a disposição do PT de respeitar a ordem legal e, sobretudo, de governar com a Constituição. Além daí, é ralo. Ciro Gomes trouxe um projeto com propostas específicas de muitos gostos. Nos piores, tem uma reforma tributária de passado fracassado, presente mal explicado e futuro desconhecido. Oferece também um golpismo plebiscitário (pela reciclagem da maioria que porventura o eleja). Nos melhores sabores, tem o fim do vestibular (substituído por exames federais regulares) e a determinação de levar o governo federal a só transacionar com empresas que distribuam seus lucros com os empregados. Isso dando mais espaço à pesca do que à segurança pública.
Noves fora as promessas gerais de crescimento, queda dos juros e aumento do emprego, se o programa de Serra passar por uma lipoaspiração, fica com cerca de 15% do tamanho original, na marca de seus concorrentes. Seu texto é uma mistura de dissertação de mestrado com mensagem ao Congresso. Podem-se selecionar cinco propostas concretas de Serra:
1) Estender a 100% das cidades brasileiras a rede de água potável. (Ela está em 89%.)
2) Aumentar de 47% para 80% a percentagem da população com acesso à rede de saneamento urbano.
3) Baixar a mortalidade infantil de 29,6 crianças mortas em cada mil nascidas vivas para algo abaixo de 20. O candidato se compromete a aumentar em 50% os leitos de UTIs neonatais.
4) Aumentar a participação dos genéricos nas prateleiras das farmácias, levando-os a 40% dos medicamentos vendidos.
5) Criar mecanismos que afiram a participação de negros nas empresas que transacionam com o governo federal. Isso é também uma maneira de permitir que haja mais negros entre os aprovados nos concursos públicos. Não fala em cotas, mas em algo semelhante.
Quando suas promessas geram despesas, Serra mostra de onde tirará o dinheiro. Fica visível no texto do programa que o candidato fez concessões à banalidade, mas se manteve no combate à demagogia.
O candidato do PSDB insiste na idéia de melhorar a segurança pública por meio da criação de um ministério da segurança, providência que servirá, com certeza, para aumentar a segurança do cidadão que ganhar o lugar de ministro. Se essa proposta é potencialmente inócua, Serra foi o único a comprometer-se a batalhar pelo fim das férias forenses, de forma a tornar mais ágil a Justiça.
Fechado o ciclo, vê-se que os programas dos três candidatos são politicamente corretos. Depois de lê-los, Elias Maluco não fica com medo da eleição de nenhum dos três. Pode votar em qualquer um deles.
É um prazer registrar que Serra, como Lula e Ciro Gomes, compromete-se a abrir o caminho para regularizar a propriedade dos imóveis dos milhões de brasileiros que vivem na periferia das grandes cidades. Se os três candidatos são homens de palavra, em 2006 não haverá mais a expressão "loteamento clandestino" no léxico urbano brasileiro.

Viva a banca

Enquanto o governo anuncia seu enésimo plano de estímulo ao financiamento da casa própria, deu-se mais uma gracinha no mundo da ekipekonômica.
Depois de terem passado cerca de US$ 5 bilhões de recursos do Sistema Financeiro da Habitação para os grandes bancos beneficiados pelo Proer, os sábios descobriram que os felizes beneficiados não os usaram para financiar imóveis. Nem isso lhes passou pela cabeça. Afinal, podendo emprestar a juros reais de 50%, não tinham razões para fazê-lo a 12% ao ano.
Tudo bem. Terminando o governo, resolveu-se criar um mecanismo por meio do qual as grandes casas financeiras devolverão o dinheiro ao Banco Central. Terão um prazo de cem meses para fazê-lo. Substituíram o financiamento da casa própria pelo financiamento da própria banca.

Contagem

Faltam menos de dois meses para a eleição. Espera-se que a resistência de uma procuradora dure mais um pouco, de forma a impedir que usineiros de cana consigam tomar da Viúva algumas centenas de milhões que cobram por conta de um subsídio cataléptico, daqueles que ressuscitam em ano eleitoral.

Com distância

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o com-terra (urbana e rural) José Rainha Júnior entraram num processo de distanciamento.
Afastam-se com a paciência de uma manada que marcha pelo pasto mato-grossense. Nem tão depressa que emagreçam, nem tão devagar que fiquem perigosamente próximos.

A boa escola teve um mau aluno

Nas contradições de Ciro Gomes há um ingrediente diverso das habituais idas e vindas dos políticos. É o desabrido descaso pela verificação, a presunção da prerrogativa de dizer o que bem entende. Só isso justifica que ele tenha dito, sem que nada lhe fosse perguntado, "Eu estudei na escola pública todos os anos da minha vida". É na aparente irrelevância do assunto que está a gravidade da questão.
Se em 1994 o salário mínimo estava em US$ 100 ou US$ 82, isso pode não ter muita importância. A vulgar opinião que Ciro tinha do ex-senador Antonio Carlos Magalhães mudou, da mesma forma que mudou a de Orestes Quércia a respeito de Lula. Ciro não fundou o PSDB, mas poderia tê-lo fundado. O prêmio da Unicef foi dado à obra de Tasso Jereissati, mas foi Ciro quem o recebeu. Não quitou a dívida do Ceará, mas gostaria de tê-la quitado. Pode-se admitir que todos esses casos estejam para a política assim como a "mão de Deus" esteve para o famoso gol de Maradona. Uma ajeitadinha, enfim.
A questão do colégio é diferente, por absoluta, gratuita e frágil.
Ciro Ferreira Gomes fez a primeira parte de ciclo médio no então Ginásio Sobralense. Não foi pouca coisa. A escola, privada, pertencente à diocese de Sobral, foi criada em 1934 pela dominante figura do bispo-conde José Tupinambá da Frota, uma espécie de patrono da cidade no século 20. Dom José fundou o Sobralense para os rapazes e o colégio Sant'Ana para as moças, tornando-os centros de formação de uma elite cristã no norte do Ceará. Em Sobral, o Sobralense é algo do tope e do tipo do Santo Inácio (escola de Pedro Malan) no Rio de Janeiro.
Tem gente que esquece o dia do aniversário da mulher (e paga caro por isso), mas não há notícia de alguém que tenha esquecido o nome do colégio onde estudou. Ciro Gomes, com certeza, não esqueceu o Sobralense.
Que diferença faz se um bípede estudou em escola pública ou privada? Nenhuma. Exatamente por não fazer diferença é que a pergunta volta: por que Ciro Gomes achou que podia dizer, sem que lhe ocorresse que alguém haveria de conferir, que estudou "todos os anos" da sua vida em escolas públicas? O que leva uma pessoa de 44 anos a dizer uma coisa dessas sabendo que seus colegas de turma estão vivos?
Cada um fica com sua resposta e com a idéia de como se sentiria se fizesse coisa parecida. A menos que tenha razão o bruxo mexicano Carlos Castañeda. Ele dizia ter nascido em São Paulo. Quando lhe mostraram que isso era falso como uma nota de três dólares, deu a seguinte resposta: "A realidade objetiva não tem a menor importância".

Devolvam as condecorações do general

O Senado votou na semana passada o decreto legislativo que cassa a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul dada em 1999 por FFHH ao larápio peruano Alberto Fujimori, que então exercia a Presidência de seu país. Demagogia das piores.
É demagogia porque a concessão de condecorações faz parte da história de um país e de quem as dá. Se FFHH deu a grã-cruz a Fujimori, nada há a fazer. Tinha motivos para suspeitar do que estava fazendo. Cassar a grã-cruz de Fujimori é tão ridículo quanto o foi a cassação do mesmo crachá, dado por Jânio Quadros ao Che Guevara.
O autor da idéia foi o senador Roberto Requião. Se ele gosta do tema, deveria pedir ao Senado que votasse a devolução das condecorações militares que foram cassadas ao general Pery Bevilaqua. Esse oficial se opôs em 1963 ao esquerdismo de João Goulart com o mesmo vigor com que combateu um ano depois as arbitrariedades da ditadura. Tendo sido colocado no STM (Superior Tribunal Militar), foi por algum tempo a única ligação pública do generalato da ativa com a defesa dos direitos humanos.
Cassaram-no malvadamente em 1968, quando estava às vésperas de cair na compulsória. Deve-se a Pery Bevilaqua o fato de um general do Exército brasileiro ter estado à frente da campanha que resultou na anistia de 1979.
Pery teve suas condecorações cassadas e morreu em 1990, aos 90 anos. Seu filho, o coronel José de Escobar Bevilaqua, foi informado de que as medalhas podem ser devolvidas, desde que ele as peça. Com toda a razão, o coronel achou que a sugestão era um abuso e não requereu coisa alguma.
Ficaria bem para a história do Legislativo, do Exército e do professor aposentado (devidamente compensado) Fernando Henrique Cardoso se as condecorações do general Pery fossem devolvidas sem requerimento.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e passou os últimos dias lendo a medida provisória que disciplinou a carga horária de uma boa parte dos funcionários do BNDES. Ele sabe que os funcionários do banco lutam, há anos, para trabalhar seis horas, como todos os bancários, e não sete, como quer a diretoria da instituição. Nessa disputa, o BNDES combinou com os trabalhadores o expediente de sete horas, pagando religiosamente pela hora extra. A questão parecia pacificada, mas a Justiça considerou o acerto ilegal. Diante disso, FFHH baixou a MP e agora o expediente será de sete horas, sem choro nem vela.
Eremildo verificou que a decisão da Justiça revogando o acordo que pagou pela sétima hora levará o velho e bom BNDES a negociar uma saída com seus funcionários. Ela deverá ser o pagamento de uma indenização equivalente a dez salários.
O idiota deu-se conta de que os funcionários do BNDES serão beneficiados por um novo conceito, o de indenização por hora trabalhada e paga. Eremildo sustenta que o BNDES deve radicalizar o conceito, pagando também a hora não trabalhada que não foi paga. Por isso vai ao banco pedir ao doutor Eleazar de Carvalho que lhe pague uma indenização de dez salários (pode ser o mínimo) por não ter trabalhado no BNDES.

Na memória

Quando for escrita a história das tramas da sucessão de 2002, vai-se descobrir que a queda de asa do governador Jarbas Vasconcelos por Ciro Gomes (ou qualquer candidato que não fosse José Serra) começou a acontecer no dia 16 de outubro do ano passado.
Nesse dia Jarbas, Tasso Jereissati e Roseana Sarney reuniram-se em São Luís, na casa da então candidata do PFL. Não combinaram nada de concreto, apenas o clima.



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