São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2001

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ELIO GASPARI

As feras pernambucanas em Nova York

Na manhã de quarta-feira passada, Stephen Engelman, de 35 anos, o mago das estruturas das exposições dos grandes museus de Nova York, entrou no prédio do Guggenheim carregando uma camiseta do Super-Homem. Habitualmente, ele a usa por baixo da roupa de trabalho. É mais uma das suas maneiras de levar a vida com bom humor. Desta vez, a camiseta seria dada de presente ao marceneiro pernambucano José Floriano de Arruda Neto, 43, nove filhos, morador do Varadouro, em Olinda.
Homem de poucas palavras, Arruda foi um dos sete trabalhadores brasileiros que passaram três semanas encarapitados em andaimes dentro do Guggenheim. Viveram do hotel para o trabalho e do trabalho para o hotel, 12 horas depois. Ao final de quarta-feira, quando dois deles colocaram a mão direita na ponta do braço da imagem de São Bento, terminara a montagem do altar do Mosteiro de Olinda. Quem estava no térreo bateu palmas. Julian Zugazagoitia, o encarregado do projeto, comemorou: "É o milagre de São Bento".
Milagre do santo ou das feras pernambucanas, o altar de cedro, com 14 metros de altura e oito metros de largura, estava de pé, sem nenhum acidente. Obra do final do século 18, foi restaurado pela equipe do Laborarte, da Fundação Joaquim Nabuco, e, novamente graças a ela, reapareceu no seu esplendor no meio do sofrido outono nova-iorquino.
Em janeiro, quando foi desmontado, o altar estava de tal forma comido por cupins que foram enchidos dois panelões com bichos. Segundo o marceneiro Arruda, a estrutura não duraria mais cinco anos. Diante da peça remontada, a restauradora Pérside Omena Ribeiro lembrou-se dos dias de janeiro, quando começou o desmonte do conjunto bichado, em Olinda: "Naquela hora, eu tive medo, mas era agora ou nunca".
Recuperado graças à parceria do Guggenheim com a instituição BrasilConnects, o altar veio para Nova York acompanhado por brigas culturais e judiciais. Toda a exposição esteve a um passo de ser cancelada. Duvidava-se que pudesse ser transportado em segurança e que pudesse ser montado sem desastres. Continua-se duvidando que o museu consiga assegurar condições climáticas para que não descasque e torce-se para que volte a Olinda intacto. Terá sido a única obra de arte desse tamanho a fazer viagem tão longa com ida e volta.
Quem o vê mal percebe os encaixes de 53 peças, as duas mais pesadas com 600 kg cada uma. Quem vê Arruda e os trabalhadores da Fundação Joaquim Nabuco também não percebe aquilo de que são capazes. Para começo de conversa, os 15 cm de concreto do piso do Guggenheim não aguentavam o peso das peças. Foram colocadas duas vigas metálicas para segurar a base do altar, mas os caixotes tiveram de ser guardados num depósito climatizado, a 100 km de distância. Quando a base chegou, descobriu-se o óbvio: o chão liso do museu nada tinha a ver com o assoalho de tijolos dos monges de Olinda. Arruda abriu reentrâncias no piso e foi resolvido o primeiro problema.
O altar foi colocado aos poucos numa armação de madeira que, por sua vez, fica atada a outra, de aço. Ninguém sabe por que, mas o terço superior da estrutura metálica tinha uma inclinação de 11. Arruda foi o primeiro a percebê-la. Mexeu-se na cápsula de madeira, e o problema parece resolvido.
Pela lógica protestante de Nova York, encaixes encaixam. No barroco de Pindorama, as coisas são um pouco diferentes. Assim, a equipe brasileira, chefiada pelo professor Frederico Pernambucano de Mello, acabou mostrando aos americanos como se lida com encaixes sem lógica. O da peça mais alta, por exemplo, exigiu quase que um diálogo pessoal entre o operário e a madeira.
Dos sete brasileiros, cinco trabalhadores eram monoglotas e compartilhavam os andaimes com 15 americanos que, em muitos casos, tinham curso superior, mas não falavam português. Quando as coisas ficavam mais difíceis, a restauradora Patrícia Correa servia de intérprete, seguindo uma recomendação do chefe do grupo: "Não traduza palavrões". Poupadas as mães, as duas equipes trabalharam em paz. A brasileira, a US$ 75 por dia, fora o hotel e o salário do Recife. A americana, sabe-se lá por quanto, mas US$ 40 por hora não seria um mau palpite.
Desde a noite de quarta-feira, o altar do mosteiro de Olinda brilha no vão central do Guggenheim. Serviu de cenário para um jantar chique oferecido aos patronos do museu. Parece que entrou no prédio pela mão de algum santo. Apesar dos riscos e dos maus agouros, a competência com que foi manuseado permitiu que a primeira fase de sua aventura terminasse muito bem. Descascou alguns centímetros, há paredes do museu chorando umidade (duas são socorridas por ventiladores), mas, até agora, ninguém teve surpresas.
Numa gentileza típica da cultura americana, o catálogo da exposição registra os nomes da equipe da Fundação Joaquim Nabuco. Vai do chefe aos marceneiros. Foi a primeira vez que Arruda teve o seu nome lembrado numa grande exposição. Numa cortesia típica da elegância do Guggenheim, cada um deles ganhou um volume (quase cinco quilos de textos em inglês para o excesso de bagagem).
Na quinta-feira, quando o Itamaraty ainda não sabia se FFHH visitaria a exposição na sexta ou no domingo, os marceneiros pernambucanos tomaram o rumo do aeroporto. Quem for ao Guggenheim poderá até pensar que eles não existem.

Brasil, sem Corpo nem Alma

A exposição "Brasil, Corpo e Alma", montada no Guggenheim de Nova York, é um altar cercado de nada. No meio da rampa circular do prédio, reina a peça vinda do mosteiro beneditino de Olinda. À volta, uma mistura de treva e presunção misturada com sobras de sucessos e momentos de improviso.
A treva foi concebida pelos organizadores. O museu, impecavelmente branco, teve o seu interior pintado de preto. Em tese, para realçar as peças barrocas. Na realidade, para coisa nenhuma. A escuridão serviu apenas para dificultar a leitura dos textos indigentes das placas que identificam as obras. Na cúpula, estamparam uma imagem que tanto pode ser o retrato de uma primavera no inferno como de um outono canadense. Diz a lenda que aquilo é uma floresta tropical. Tudo bem, desde que o prédio do museu seja uma caixa de iogurte.
Nesse cenário de nenhum valor, colocou-se uma exposição que parece sorriso desdentado. Do Brasil não há corpo nem alma. Seu povo, dançando rindo ou rezando, está confinado a magníficos filmes exibidos nos cantos das escadas. Da escravidão, brilha a joalheria. Entende-se que uma exposição de obras de arte não precise de povo, mas, nesse caso, não há porque iludir a patuléia, confinando-o aos desvãos do prédio.
Há algo de estranho com a série de pinturas coloniais, mas, sabendo-se que o Museu Nacional da Dinamarca recusou-se a emprestar as famosas obras do pintor holandês Abert Eckhout, entende-se a obturação. Mais adiante, há belas peças de arte plumária indígena. Todas vindas de uma coleção particular americana. Nada que lembre a maravilha da exposição do Redescobrimento. Sabendo-se que objetos magníficos vindos do museu Emílio Goeldi foram travados pela burocracia sanitária americana, entende-se e louva-se a solução.
Fica a impressão de que se acreditou ser possível compactar a exposição do Redescobrimento. Sumiu o capítulo da arte popular, mas entraram algumas carrancas do São Francisco e uma bonita parede de ex-votos. Não sumiu, contudo, o capítulo da arte contemporânea canônica. Nele, afora a sala obrigatória de Hélio Oiticica e Ligia Clark, artistas anticanônicos em vida, há uma preciosa montagem de Regina Silveira, chamada "O Paradoxo do Santo". Mistura uma pequena imagem popular à sombra desfigurada da estátua de Caxias existente no centro de São Paulo. Situada ao fim de uma escalada de seis andares, infelizmente recebe poucas visitas.
Num aspecto, a exposição do Guggenheim é informativa. Juntou, numa só mostra, cinco obras-primas da arte brasileira. Lá estão: "Manto da Apresentação", de Arthur Bispo do Rosário; "Léa e Maura", as duas mineiras com seus vestidos de florzinhas estampadas, de Guignard; mais "Café", de Portinari, e "As Cinco Moças de Guaratinguetá", de Di Cavalcanti. Somando-se os "Operários", de Tarsila do Amaral, chega-se a um acervo que raramente os brasileiros conseguem ver numa só exposição. (Na do Redescobrimento, por exemplo, faltou pelo menos o "Café", de Portinari.)
Assumidamente, a BrasilConnects, instituição que organizou a exposição, interessa-se em divulgar pelo mundo um Brasil sem miséria, violência ou meninos de rua. Como diz seu presidente, Edemar Cid Ferreira, "a arte transcende todos os discursos sociais, políticos e ideológicos". Na mostra do Redescobrimento, da qual ele foi corpo e alma, esse resultado foi conseguido. Na do Guggenheim, o corpo do Brasil não apareceu e a alma transcendeu a ponto de ninguém saber onde foi parar.
Serviço: quem estiver planejando ir ao Guggenheim não deve desanimar. Há nele outra exposição, esplêndida, de obras do pintor Norman Rockwell, gênio do realismo capitalista americano. Ele encantou os leitores da revista "Saturday Evening Post" com suas capas sentimentais, patrióticas e, às vezes, demagógicas.

Erro

Ao contrário do que foi publicado aqui, no domingo passado, o lobista APS não se chama Alexandre Paes de Barros, até porque, nesse caso, seria APB. Seu nome é Alexandre Paes dos Santos.

O contrabando está na mira

A zona de livre delinquência de Foz do Iguaçu está sob a mira do governo americano. Em menos de dois meses, ele conseguiu desenhar um mapa das quadrilhas que mandam na região da tríplice fronteira. Lá funciona uma associação de contrabandistas, traficantes de drogas e lavanderias de dinheiro. Um pequeno pedaço desse submundo tem relações com a máquina de financiamento do terrorismo de Osama bin Laden.
Em mais de 50 anos, nunca se reuniram tantas informações relacionadas com todos os níveis da corrupção local. Até hoje, brasileiros, argentinos e paraguaios trataram o assunto com luvas de pelica, porque a cada denúncia de um lado correspondia outra, do outro. A entrada dos americanos, que estão fora dessas malfeitorias, colocou um elemento novo na questão. Um "quem é quem" dos poderes locais fará corar cosmopolitas brasileiros e argentinos.

Dança eleitoral

Se ninguém impedir que Tasso Jereissati e José Serra ordenem a decolagem de seus aviões, o PSDB racha. Se rachar, um pedaço (o de Tasso) pode ir para a candidatura da pefelista Roseana Sarney. Pode, o que não significa dizer que esteja de malas prontas para ir. Hoje, os males do PSDB são preferências de menos e marqueteiros de mais.


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