São Paulo, quinta-feira, 12 de fevereiro de 2004

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JANIO DE FREITAS

O apêndice

À primeira vista, apenas uma divergência à toa, dessas em que cada um, como se diz, quer livrar a cara, e pronto. Sob a aparência incidental, no entanto, uma síntese eloquente do desvio em que entrou o sistema de poderes políticos e administrativos e da indiferença, um tanto suicida, que a sociedade adotou.
O caso, em si, é simples. A emenda constitucional que autoriza a expropriação das terras onda se comprove escravismo está entregue a longo e tranqüilo sono na Câmara. Secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda acusou descaso do presidente da Câmara. João Paulo Cunha respondeu que a falta de empenho é do governo, que não incluiu a emenda nem mesmo entre as votações para as quais fez a convocação extraordinária do Congresso, ainda vigente. O que João Paulo diz é verdade, tanto que, a três dias de encerrar-se a convocação extraordinária, correu para incluir o projeto na pauta. Mas não é tudo.
Como e por que uma emenda constitucional de tamanha importância dorme por tanto tempo na Câmara? A história dos projetos que passam anos incontáveis no Congresso é imensurável, e nela se encontram as explicações mais variadas. Mas, no período recente, a natureza desse problema alterou-se.
Com o processo sistemático de suborno - é essa mesma a palavra, outra qualquer é adocicante - instaurado nas relações do governo de Fernando Henrique Cardoso com as bancadas parlamentares, o Congresso deixou de ser instituição independente. Tornou-se apêndice, extensão do governo. Desde que liberadas as verbas orçamentárias de determinados parlamentares, concedidos cargos federais nos Estados -conforme as conveniências eleitorais ou negociais de outros- e proporcionadas as várias modalidades de favorecimento para tantos mais, estavam criadas as condições para o governo predeterminar o comportamento em relação a qualquer tema.
Se o método falhou alguma vez, foi por atendimento ainda incompleto pelo governo ou por aumento das exigências, uma e outra situação logo resolvidas. Os arquivos de jornais ficaram como provas indeléveis de que cada aprovação desejada pelo governo Fernando Henrique foi antecedida de concessões moralmente injustificáveis.
O passado anterior ao governo Fernando Henrique registra inúmeros episódios de concessões subornantes do governo a parlamentares. Mas ocasionais, e sempre encontravam reação condenatória em parte dos jornais e na opinião pública. Do uso esporádico, o método passou a processo sistemático. E talvez tenha sido o pior dos males praticados e legados ao país pelo governo Fernando Henrique: golpeou o Congresso, como que o fechando para o exercício que lhe cabe no regime democrático e a Constituição brasileira lhe prescreve.
O governo Lula seguiu pela mesma senda. De início, um tanto mais discreto, como se ainda encabulado de sua transformação. Depois, sem mais cerimônias, que o diga o PMDB.
Se a emenda antiescravismo não entrou na pauta destes dias de convocação extraordinária, de fato foi porque o governo não a incluiu.
Mas o projeto dorme há meses na Câmara porque não vigoram mais a independência e a obrigação das casas do Congresso de definir e aplicar as suas pautas de atividade: tudo está condicionado à orientação -e portanto à conveniência ou à complacência- do governo. Como o governo não orientou pelo andamento do projeto, uma providência de tamanha importância ficou nas gavetas.
Enquanto miseráveis continuam sob condições de escravismo e fiscais são assassinados -e Lula faz discursos inflamados a propósito.


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