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ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ O PRESIDENTE
Em livro, ex-assessor compara presidente a príncipe eleito pela elite para atuar na sua sombra e afirma que PT foi picado pela mosca azul
Poder mostrou face real de Lula, diz Frei Betto
PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO
O teólogo e escritor Frei Betto
passou 687 dias em uma sala no
Palácio do Planalto próxima à do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como assessor especial do
amigo com quem se relaciona há
26 anos.
Acumulou desencantos: diz
nunca ter ouvido nenhuma menção às palavras socialismo ou socialista por aqueles corredores;
reclama que Lula abriu mão do
comando da economia, adotou a
política tucana, afastou-se dos
movimentos sociais e não cumpriu as reformas que prometeu
em campanha.
Mas, nas 317 páginas de seu novo livro, "A Mosca Azul" -uma
reflexão sobre política e poder, a
partir de sua experiência no Planalto-, Frei Betto suaviza a responsabilidade do amigo Lula no
próprio governo e é cáustico com
o PT, esse sim mordido pela mosca azul do poema escrito em 1901
por Machado de Assis, aquela de
"asas de ouro e granada" que, ao
picar, deixa "deslembrado de tudo, sem comparar nem refletir".
Frei Betto afirma que o PT foi
dominado por interesses eleitorais, fez alianças espúrias e seduziu-se pelo poder, definido como
"mais atraente do que sexo e dinheiro, porque facilita acesso aos
dois".
Ao presidente, restam dois
questionamentos, que sugerem,
mas não desvelam o pensamento
do autor. Frei Betto pergunta se as
elites não escolheram Lula como
o "ascendente" de Maquiavel,
"aquele que os grandes constituem príncipe a fim de poderem,
à sombra de sua autoridade, continuar a satisfazer seus desejos
ambiciosos".
Ironiza o fato de Lula ter se dito
socialista no passado e ter afirmado na Presidência que nem de esquerda foi: "O poder não muda as
pessoas, faz com que manifestem
a verdadeira face".
No livro, Frei Betto é sarcástico
com o ex-presidente da República
Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002), cujo governo condena por ter, na sua visão, tentado
"cooptar e criminalizar" os movimentos sociais.
Narra uma viagem a Veneza, na
qual a socióloga Franca Bimbi,
então vice-prefeita, indagou a Lula no almoço:
"FHC traiu a sociologia ou o povo brasileiro?"
"Os dois", respondeu Lula.
À frente de pergunta semelhante -Lula traiu o PT ou o povo
brasileiro?- , o frade dominicano suaviza:
"Lula não traiu. Lula foi traído,
como ele expressou. Este governo
foi eleito para promover mudanças substanciais na estrutura brasileira. Isso não ocorreu. Houve
avanços, sim, do ponto de vista
social, do ponto de vista da contenção da inflação, mas não houve avanços suficientes para modificar nossas estruturas arcaicas,
como por exemplo a fundiária",
disse, na sede da editora de seu livro, no centro do Rio.
Frei Betto conta no livro reuniões que manteve, antes da existência do PT, com FHC, Plínio de
Arruda Sampaio e Almino Afonso, na casa de um jornalista em
São Paulo. Eles queriam sua adesão -e a das comunidades eclesiais de base- à criação de um
novo partido socialista.
"Socialismo à sombra da social-democracia européia, com pluralismo partidário e venerável respeito à riqueza acumulada pelas
elites. Vinham eles com a fôrma,
eu entraria com o recheio: o povo", escreve Frei Betto.
Com a proposta recusada, FHC
suspeitou que ele trouxesse uma
carta escondida na manga: fundar
um novo PCB -em vez do Partido Comunista Brasileiro, o Partido das Comunidades de Base.
"Me chamou de leninista. Esbravejou frente à minha resistência.
Acreditava que, tendo eu participado da formação dos "sovietes
eclesiais", em breve daria a eles
uma consistência partidária. E tome vinho chileno!", rememora.
A relevância da menção à bebida se origina numa descoberta
posterior de Frei Betto: "Tempos
depois, um confrade, a quem eu
nunca comentara tais encontros,
contou ouvir de um general da
ativa que tudo havia sido gravado
pelo SNI. E tome vinho chileno..."
Hoje, o frade desconfia que o
excesso de vinho possa ter sido
uma tentativa de desembaraçar os
presentes, o que leva à sua suposição de que algum dos presentes
sabia que a conversa estava sendo
gravada.
A presença da bebida é recordada de outra maneira ao citar o clima do início da amizade com Lula, durante encontro de sindicalistas numa cidade do interior de
Minas Gerais, João Monlevade,
em janeiro de 1980: "líderes sindicais e representantes de movimentos populares, uns animados
pelos eflúvios evanescentes da cana destilada, outros contagiados
por essa alegria despudorada do
companheirismo machista..."
Travo amargo
"A Mosca Azul" é uma reflexão
-amparada por citações de especialistas em política como Robert
Michels e Norberto Bobbio- sobre "sonhos esgarçados, a esperança suplantada pelo medo de
nutrir expectativas, a desdita de
promessas esvoaçadas em mera
retórica, o travo amargo no coração contraído", escreve.
Ao chegar ao período em que
esteve no Palácio do Planalto,
apesar de poupar Lula, o ex-assessor do presidente é crítico: "A violência urbana, o desemprego, o
sucateamento da saúde pública, a
falta de saneamento e moradia, de
acesso à terra e à renda comprovam que se administrou o país para os donos do poder, a parcela
dos 20% da população que detém
em mãos mais de 60% da riqueza
nacional".
Lamenta que Lula tenha adotado a política de superávit primário (economia para pagamento de
juros), na qual "o país gastaria
menos do que necessitaria e poderia, de modo a remeter aos credores mais do que esperavam".
Frei Betto afirma que, entre 1º
de janeiro de 2003 e 18 de novembro de 2004, quando deixou a assessoria especial da Presidência,
nunca ouviu falar de "mensalão"
ou de Marcos Valério.
Assim descreve os sucedâneos
da crise: "Um pequeno núcleo de
dirigentes do PT conseguiu em
poucos anos o que a direita não
obteve em décadas, nem nos anos
sombrios da ditadura: desmoralizar a esquerda".
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