São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ O PRESIDENTE

Em livro, ex-assessor compara presidente a príncipe eleito pela elite para atuar na sua sombra e afirma que PT foi picado pela mosca azul

Poder mostrou face real de Lula, diz Frei Betto

PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO

O teólogo e escritor Frei Betto passou 687 dias em uma sala no Palácio do Planalto próxima à do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como assessor especial do amigo com quem se relaciona há 26 anos.
Acumulou desencantos: diz nunca ter ouvido nenhuma menção às palavras socialismo ou socialista por aqueles corredores; reclama que Lula abriu mão do comando da economia, adotou a política tucana, afastou-se dos movimentos sociais e não cumpriu as reformas que prometeu em campanha.
Mas, nas 317 páginas de seu novo livro, "A Mosca Azul" -uma reflexão sobre política e poder, a partir de sua experiência no Planalto-, Frei Betto suaviza a responsabilidade do amigo Lula no próprio governo e é cáustico com o PT, esse sim mordido pela mosca azul do poema escrito em 1901 por Machado de Assis, aquela de "asas de ouro e granada" que, ao picar, deixa "deslembrado de tudo, sem comparar nem refletir".
Frei Betto afirma que o PT foi dominado por interesses eleitorais, fez alianças espúrias e seduziu-se pelo poder, definido como "mais atraente do que sexo e dinheiro, porque facilita acesso aos dois".
Ao presidente, restam dois questionamentos, que sugerem, mas não desvelam o pensamento do autor. Frei Betto pergunta se as elites não escolheram Lula como o "ascendente" de Maquiavel, "aquele que os grandes constituem príncipe a fim de poderem, à sombra de sua autoridade, continuar a satisfazer seus desejos ambiciosos".
Ironiza o fato de Lula ter se dito socialista no passado e ter afirmado na Presidência que nem de esquerda foi: "O poder não muda as pessoas, faz com que manifestem a verdadeira face".
No livro, Frei Betto é sarcástico com o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), cujo governo condena por ter, na sua visão, tentado "cooptar e criminalizar" os movimentos sociais.
Narra uma viagem a Veneza, na qual a socióloga Franca Bimbi, então vice-prefeita, indagou a Lula no almoço:
"FHC traiu a sociologia ou o povo brasileiro?"
"Os dois", respondeu Lula.
À frente de pergunta semelhante -Lula traiu o PT ou o povo brasileiro?- , o frade dominicano suaviza:
"Lula não traiu. Lula foi traído, como ele expressou. Este governo foi eleito para promover mudanças substanciais na estrutura brasileira. Isso não ocorreu. Houve avanços, sim, do ponto de vista social, do ponto de vista da contenção da inflação, mas não houve avanços suficientes para modificar nossas estruturas arcaicas, como por exemplo a fundiária", disse, na sede da editora de seu livro, no centro do Rio.
Frei Betto conta no livro reuniões que manteve, antes da existência do PT, com FHC, Plínio de Arruda Sampaio e Almino Afonso, na casa de um jornalista em São Paulo. Eles queriam sua adesão -e a das comunidades eclesiais de base- à criação de um novo partido socialista.
"Socialismo à sombra da social-democracia européia, com pluralismo partidário e venerável respeito à riqueza acumulada pelas elites. Vinham eles com a fôrma, eu entraria com o recheio: o povo", escreve Frei Betto.
Com a proposta recusada, FHC suspeitou que ele trouxesse uma carta escondida na manga: fundar um novo PCB -em vez do Partido Comunista Brasileiro, o Partido das Comunidades de Base. "Me chamou de leninista. Esbravejou frente à minha resistência. Acreditava que, tendo eu participado da formação dos "sovietes eclesiais", em breve daria a eles uma consistência partidária. E tome vinho chileno!", rememora.
A relevância da menção à bebida se origina numa descoberta posterior de Frei Betto: "Tempos depois, um confrade, a quem eu nunca comentara tais encontros, contou ouvir de um general da ativa que tudo havia sido gravado pelo SNI. E tome vinho chileno..."
Hoje, o frade desconfia que o excesso de vinho possa ter sido uma tentativa de desembaraçar os presentes, o que leva à sua suposição de que algum dos presentes sabia que a conversa estava sendo gravada.
A presença da bebida é recordada de outra maneira ao citar o clima do início da amizade com Lula, durante encontro de sindicalistas numa cidade do interior de Minas Gerais, João Monlevade, em janeiro de 1980: "líderes sindicais e representantes de movimentos populares, uns animados pelos eflúvios evanescentes da cana destilada, outros contagiados por essa alegria despudorada do companheirismo machista..."

Travo amargo
"A Mosca Azul" é uma reflexão -amparada por citações de especialistas em política como Robert Michels e Norberto Bobbio- sobre "sonhos esgarçados, a esperança suplantada pelo medo de nutrir expectativas, a desdita de promessas esvoaçadas em mera retórica, o travo amargo no coração contraído", escreve.
Ao chegar ao período em que esteve no Palácio do Planalto, apesar de poupar Lula, o ex-assessor do presidente é crítico: "A violência urbana, o desemprego, o sucateamento da saúde pública, a falta de saneamento e moradia, de acesso à terra e à renda comprovam que se administrou o país para os donos do poder, a parcela dos 20% da população que detém em mãos mais de 60% da riqueza nacional".
Lamenta que Lula tenha adotado a política de superávit primário (economia para pagamento de juros), na qual "o país gastaria menos do que necessitaria e poderia, de modo a remeter aos credores mais do que esperavam".
Frei Betto afirma que, entre 1º de janeiro de 2003 e 18 de novembro de 2004, quando deixou a assessoria especial da Presidência, nunca ouviu falar de "mensalão" ou de Marcos Valério.
Assim descreve os sucedâneos da crise: "Um pequeno núcleo de dirigentes do PT conseguiu em poucos anos o que a direita não obteve em décadas, nem nos anos sombrios da ditadura: desmoralizar a esquerda".


Texto Anterior: ABI critica governador do Paraná por colocar outdoors contra jornal
Próximo Texto: Apesar de críticas, frade apóia reeleição
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.