São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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ELIO GASPARI

A síndrome das reivindicações sucessivas

Lula criou um programa de estímulo à construção civil. Por falar nisso, cadê os resultados do Programa Papel Passado? Aquele que anunciava metas federais para regularizar a propriedade urbana dos sem-escritura. São 15 milhões de famílias que construíram suas casas em terrenos comercializados ilegalmente. Promessa de campanha de Lula, de governadores e de prefeitos, a iniciativa corre o risco de ficar parecida com o Fome Zero e o Primeiro Emprego. Virou lorota federal, estadual e municipal. Funcionou, e bem, em Manaus.
A propriedade de um imóvel é o principal patrimônio dos brasileiros. Se o trabalhador tem a casa, mas não tem escritura, sua vida fica mais difícil para obter crédito e abrir um negócio. É empurrado para a economia informal.
Pode-se estimar que o andar de baixo do Terceiro Mundo e do Leste Europeu esteja sentado num ervanário de US$ 10 trilhões de patrimônio imobiliário marginalizado. Num cálculo grosseiro, as propriedades dos sem-escritura brasileiros podem estar na casa dos R$ 150 bilhões. Os programas de regularização dessas propriedades foram vitimados pela Síndrome das Reivindicações Sucessivas.
Trata-se de um ardil do andar de cima. Consiste em reconhecer que uma coisa deve ser feita, condicionando astuciosamente a sua execução a outra medida, sempre razoável. Malandragem suprapartidária, a reivindicação sucessiva envenena iniciativas que pretendem melhorar a vida de quem precisa de atenção.
Um exemplo: na segunda metade do século 19, discutia-se a Lei do Ventre Livre, um remendo para postergar a abolição da escravatura.
Foi combatida com o argumento de que não se poderia libertar as crianças sem antes dar-lhes escolas e um ofício. Seria uma desumanidade. Ou seja: enquanto não se fizer B, não se pode fazer A. Os fazendeiros não queriam escolas. O negócio deles era preservar a escravaria.
A síndrome da reivindicação sucessiva contamina também pessoas e governos que sinceramente desejam endireitar o torto. Ela entortece inúmeros programas de regularização de lotes urbanos sustentando que não se deve dar escritura ao dono de uma casa enquanto sua rua não tiver coisas como asfalto, calçada e bueiros. O sujeito paga impostos e o Estado, que não lhe dá serviços, nega-lhe a escritura porque faltam-lhe os serviços negados.
O truque permite ao magano defender todas as causas sem trabalhar em nenhuma. Enaltece a parolagem e disfarça o compromisso. Permite aos governantes o usufruto da publicidade dos projetos, resguardando-lhes o direito de justificar a inércia do plano que prometia A porque alguém (às vezes ele mesmo) não fez B.
Nas duas maiores cidades do país, os programas de regularização de lotes apresentam resultados pífios. Em São Paulo, tire-se o chapéu para Paulo Maluf. Regularizou 34,3 mil lotes, contra 29 mil de Marta Suplicy e 4.000 de José Serra em um ano. No Rio, o número de processos concluídos não chegou a mil. Em três anos, em todo o país, o programa Papel Passado ajudou a regularizar a situação de 40 mil famílias (8,9% da meta-companheira).
Felizmente, Lula, os governadores e os prefeitos interessados em passar à patuléia outro papel que não o de boba, podem olhar para Manaus. Lá a iniciativa de um prefeito e R$ 850 mil do Papel Passado fizeram o sucesso. Em menos de um ano, Serafim Correa acertou a vida de 8.000 famílias. Atende aos donos de lotes com menos de 250 m2 que comprovam cinco anos de residência no local. Enquanto o governo federal vai empregar 258 jornalistas na Transpetro, o prefeito Serafim Correa conseguiu esse resultado com o trabalho de 30 funcionários. Teve a ajuda do governo do Amazonas, do poder judiciário e da associação dos cartórios. Com a escritura na mão, 400 pessoas já conseguiram financiamentos para a compra de materiais de construção.
Tudo isso antes do pacote-companheiro.
De acordo com a teoria das reivindicações sucessivas, Serafim Correa fez tudo errado: nenhum lote tem esgoto, metade não tem calçada, 20% não tem asfalto e 5% nem luz ligada pela concessionária. A mudança foi só uma: 8.000 famílias de brasileiros têm escritura da casa onde moram.

PT da boquinha
Pode-se conviver com um ministro da Fazenda que usou um avião particular para ir de Brasília a Ribeirão Preto. É apenas uma pisada no tomate (com ervilha). Mais difícil é agüentar um ministro da Fazenda que trata como cretinos àqueles que acreditam no que diz.
Aos fatos:
Em julho de 2003, Antonio Palocci voou no Citation do empresário Roberto Colnaghi. Levou consigo o presidente do PT, José Genoino. Quando a impropriedade foi revelada, desmentiu que tivesse tomado a carona. Provada sua presença no vôo, a explicação foi outra: embarcara a convite de Genoino. Mentira: numa entrevista gravada, o ex-presidente do PT dissera que "fiz a viagem a convite dele".
Depondo na CPI, em janeiro, Palocci disse o seguinte: "O PT (...) alugou um avião para fazer a viagem".
Colnaghi desmentiu a lorota: "A referida aeronave (...) jamais foi locada a terceiros". Diante disso, o ministro avançou novamente na paciência alheia: "Recorri inadvertidamente à expressão alugou, sem me apegar à acepção estrita do termo".
Há no Brasil 5,7 milhões de pessoas que moram em imóveis alugados. Palocci poderia ensiná-las a desapegar-se da "acepção estrita do termo", convertendo aluguel em boca-livre. Pena que não se possa acreditar no que vier a dizer.

Banca encapuçada
Pede-se à banca que não faça macumbas contra o secretário do Tesouro, Joaquim Levy. Ele quer licitar a folha de R$ 11,3 bilhões do INSS. Com isso, em vez de a Viúva pagar pelo serviço, receberá para repassá-lo. Quem estiver contrariado pode botar a cara (e o logotipo) na vitrine. Crítica anônima é golpe baixo.

Madame Natasha
Madame Natasha recebeu uma mensagem que tinha como remetente o endereço uerjxxi@uerj.br, listando 36 erros cometidos pela garotada que fez a prova do Enem.
A senhora assustou-se com o texto de apresentação da lista:
"Colegas,
Vejam que maravilha as frases extraídas do Enem 2005. Com certeza, nos- so problema estão nas cotas (precisamos de muito, muito mais cotas). Educação com qualidade?? Não precisa!"
Madame acha que se deve criar um curso para professores aprenderem que nosso problema não está nas cotas. Está na ignorância atrevida.

Números
Lula recebe R$ 3.900 mensais como aposentado da ditadura que, em 1980, o prendeu por 51 dias e lhe tomou a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. O governo japonês paga a cada um dos 300 mil sobreviventes das bombas de Hiroshima e Nagasaki uma pensão de US$ 1.120 (R$ 2.400). Para arrebentar o Japão foram necessárias duas bombas atômicas. Para detonar o erário brasileiro, basta a voracidade.

Palavras
Vem aí o índice de crescimento do PIB em 2005.O Banco Central acha que vai dar 2,6%. É uma oportunidade para que se reflita sobre o perigo que o país corre quando é governado por um marqueteiro da ignorância.
Entre janeiro e junho do ano passado "nosso guia" disse o seguinte: "Não sou economista, não sou especialista, mas vou dizer: neste ano a gente vai surpreender outra vez. (...) Não tem por que 2005 não ser o ano mais importante da década neste país". "Penso que poderemos crescer 5% ou um pouco mais."


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