São Paulo, segunda-feira, 12 de agosto de 2002

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CRÍTICA

Filme mostra transformação da favela em front do crime

ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

"Cidade de Deus", de Fernando Meirelles e Katia Lund, é antes de tudo um filme político. É possível enumerar vários problemas cinematográficos e ideológicos na realização, mas o principal e mais urgente está exposto: trata-se uma saga ambiciosa que narra como uma favela se transformou progressivamente num front do crime organizado e num espaço de violência incontrolável.
Alguns espectadores vão reclamar que os diretores espetacularizam demais as situações, transformando a questão complexa da marginalização social numa espécie de "thriller" violento.
Poderão dizer que o conflito central, de um jovem que tenta escapar do círculo vicioso do crime, é por demais esquemático. Argumentarão ainda que "Cidade de Deus" circunscreve muito as situações ao mundo da favela, dando a impressão de que a violência se auto-engendra sem ter fundamento no processo econômico-social brasileiro.
É preciso lembrar, porém, que os diretores adotam a forma do filme realista de grande público, mesmo que não sigam todas as suas regras e tenham filmado com liberdade e inspirados por uma sincera preocupação social.
A geração de Meirelles e Lund é a do pós-Cinema Novo, e suas referências são sobretudo o naturalismo urbano de Hector Babenco (em "Pixote"), o neoclassicismo truncado e histérico de Martin Scorsese (em "Os Bons Companheiros") e o filme "antropológico" de Ken Loach.
Ajunte-se a isso algo da prática publicitária e televisiva de Meirelles e se chegará à estética do filme, que pouco tem de "Os Esquecidos", de Buñuel, mas vai comover o público pela crueza e a força da encenação e a performance vibrante e memorável dos atores, a maioria formada de amadores.
O filme, exibido com sucesso no último Festival de Cannes, foi baseado no livro homônimo e de alguma forma autobiográfico de Paulo Lins sobre um grupo de amigos na favela Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, em três épocas (anos 60, 70 e 80).
Cada época foi filmada diferentemente, na forma do plano, da fotografia, da encenação e da montagem, mas sem pôr em risco a unidade do conjunto, garantida também pelo ótimo roteiro de Bráulio Mantovani.

Ficção
Assim, "Cidade de Deus" é antes de tudo uma ficção sobre alguns garotos e sua passagem da infância à juventude e à maturidade, num mundo marginalizado em que a violência se torna cada vez mais regra social e linguagem dominante.
É também a respeito da "formação econômica" do tráfico de drogas nas favelas e, portanto, uma genealogia do crime organizado. É sobretudo um filme moralizante sobre a capacidade de resistência de um indivíduo ao seu próprio meio.
A ficção "fechada" de Meirelles e Lund pode dar impressão de que tudo está circunscrito ao mundo da favela e de que a violência, mais do que expressão da revolta social, é uma espécie de patologia de sujeitos fora da lei.
O público sabe que não é bem assim. O que não está no filme, está na realidade. Por isso ele é político e necessário: incita ao olhar comprometido. Triste daquele espectador que, ao sair da sessão, não se tocar, graças à "Cidade de Deus", sobre a sua parte de responsabilidade na produção cotidiana da injustiça social e da violência no Brasil.


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