São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2006

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Gustavo Ioschpe

Voto virgem

CADA PATOLOGIA tem as suas posologias. No mundo político, a estranheza de ambas costuma estar correlacionada.
Assim, no momento em que nos vimos diante de um Parlamento para o qual o epíteto "300 picaretas" soaria como elogio, surge a idéia do voto virgem: votar para deputado num candidato que nunca tenha sido eleito, de forma que o próximo Congresso seja todo de virgens políticos.
A idéia tem duas lógicas que são sedutoras à primeira vista. A primeira é de que pior do que está não pode ficar. Qualquer agrupamento humano seria mais ético do que os congressistas que hoje estão no poder. A segunda é de que, já que as CPIs e o sistema judicial não punem os corruptos, então que sejam punidos pelo voto. Assim, os virgens que ora entram saberiam que, em caso de corrupção, na próxima eles também iriam para a guilhotina.
Apesar da sedução inicial, a idéia não resiste a um escrutínio mais cuidadoso. Em primeiro lugar, não é verdade que é impossível ficar pior do que está. Diz o ditado que o pessimista é aquele para o qual tudo está perdido, enquanto que o otimista tem fé que as coisas ainda podem piorar. No Brasil, é preciso ser otimista. Nós que achávamos que chegáramos ao fundo do poço com os Anões do Orçamento podemos olhar para aquela época com saudosismo. Passamos da explicação risível (loteria) para a criminosa (caixa dois).
Ainda podemos avançar para a falta da explicação ("roubei, e daí?"). Sou brasileiro e não desisto nunca. A idéia de que qualquer "virgem" seria melhor do que aqueles parlamentares que estão aí seria justificada se os líderes fossem escolhidos aleatoriamente dentre os cidadãos, como na Atenas antiga. Ocorre que hoje mesmo os virgens precisam se candidatar para ser eleitos. E há que se desconfiar muito tanto da sanidade como da ética de quem opta pela vida pública justo nessa conjuntura.
O segundo problema com o voto virgem é que há, sim, bons e sérios parlamentares, gente que não só lutou pela lisura como defende projetos importantes para o país. São poucos, mas são encontráveis em todo o espectro ideológico, e acredito que todo Estado tenha pelo menos um deles. Perdê-los seria uma lástima e um retrocesso.
Fundamentalmente, o problema do voto virgem é sua idéia subjacente de que nossas agruras se devem à desfaçatez do brasileiro e do político. Ledo engano. Se devem a uma estrutura institucional que recompensa o roubo e a corrupção na atividade pública. Enquanto essa estrutura não for mudada, a maioria dos seres humanos inserida nesse caldo de cultura assumirá sua fantasia colifórmica e aproveitará sua temporada no ambiente fecal com grande desenvoltura.
O problema, claro, é que essas instituições são criadas, em grande medida, justamente pelos corruptos que deveria banir. Mais uma razão para deixar os defloramentos para a vida privada e tratar com redobrada seriedade as escolhas da vida pública.


GUSTAVO IOSCHPE é mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale (EUA)

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