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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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ELIO GASPARI

Gabeira deu uma aula ao comissariado petista

Aos 62 anos, Fernando Gabeira ensinou aos comissários do PT-Federal o tamanho de suas desimportâncias. O comissariado conduz a bancada petista sob a regra da ordem unida: quem erra o passo é afastado, suspenso, quem sabe, expulso. Essa pomposa prepotência foi desmascarada quando Gabeira decidiu andar com o próprio passo, informando que ia embora do PT. Nessa hora, Lula e os comissários José (Dirceu e Genoino) decidiram se mexer para mantê-lo no partido. Bendito o país que tem Gabeiras, gente que sabe dizer que vai embora.
Gabeira é um pedaço de uma grande geração de brasileiros (Pelé, Glauber Rocha, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso e Roberto Carlos) e tem uma vida surpreendente. Quando todo mundo pensa que ele se incorporou à paisagem, some e aparece em outro lugar.
Foi assim em 1967. Aos 26 anos, era chefe do departamento de pesquisas do "Jornal do Brasil", um dos melhores empregos da imprensa brasileira. Saiu da paisagem dos bares da moda e, em setembro de 1969, reapareceu como "Honório": "Meu Deus, sequestramos o embaixador dos Estados Unidos". A audácia do grupo em que militava permitiu a libertação de 15 presos, entre eles o eterno comissário José Dirceu.
Em 1971, Gabeira estava em Cuba, fazendo treinamento militar de guerrilheiro. Deu-se conta de que aquilo era um roubada intelectual, sumiu da paisagem e reapareceu numa militância democrática no Chile e, depois, na Europa. Regressou em 1979, com a anistia. Desceu no Rio como um Guevara ressuscitado das guerrilhas perdidas. Apareceu usando um sapato branco de salto um pouco alto. Numa manhã de Ipanema tirou do armário uma tanga que trouxera da Suécia. Ela viria a ser a famosa "tanga de crochê", que era de malha.
Pouco depois, lançou um livro intitulado "O Crepúsculo do Macho". Gabeira dizia, em 1981, que "não haveria jamais esquerda se continuássemos a reproduzir a visão burguesa da sexualidade". Saiu da paisagem e foi lutar pelos direitos das minorias, do corpo e do meio ambiente.
Em setembro passado, sessentão, o deputado Gabeira estava na paisagem petista quando votou disciplinadamente a reforma tributária do PT-Federal. Viu que a voz da disciplina estava abafando a da inteligência. Nesses dias, começou a pensar em sair da paisagem. Depois, Lula e José Dirceu foram para Cuba e ouviram hinos revolucionários dos anos 50 e 60, deixando para o vice-presidente José Alencar a paternidade da medida provisória dos transgênicos, que Gabeira sempre condenou. Já tinha engolido a importação de pneus velhos, coisa que os tucanos haviam proibido. Mais: viu a força e os meios dos grupos de interesse que convenceram o governo a aceitá-los. Decidiu saltar da paisagem.
O PT-Federal começou o ano ameaçando expulsar parlamentares. Termina-o ameaçado de expulsão da biografia de Gabeira. O deputado informa: "Não tem mais volta".

Em março de 1944 a Itália foi um Iraque

A Itália já teve seus dias de Iraque. Está nas livrarias "Nápoles - 1944", do jornalista inglês Norman Lewis.
Ele publicou seu diário de guerra, que vai de setembro de 1943, com o desastrado desembarque aliado em Anzio, até outubro de 1944, com a partida do autor para o Egito, abalado por uma fama de pé-frio. É uma preciosa narrativa de uma situação onde se misturam vitória e miséria: "Centenas, talvez milhares de italianos, na maioria mulheres e crianças, ocupavam as margens das estradas, movidos pela fome, em busca de plantas comestíveis".
Descontadas as enormes diferenças culturais e religiosas que tornam a situação do Iraque muito mais penosa, essa foi uma época de sofrimento para o povo europeu. Hoje ela sobrevive, adocicada, em filmes e séries de televisão onde faltam malfeitorias dos vencedores e vilezas dos vencidos.
No livro de Lewis, há ingleses planejando infiltrar prostitutas sifilíticas nas linhas alemãs. (Elas acabam infectando os Aliados.) Há americanos raspando coleções de porcelanas e um pai pobre trocando a filha por comida, por escrito. Um príncipe queria saber onde ficava o bordel do Exército, para deixar sua irmã.
O livro foi esplendidamente traduzido pelo general Gleuber Vieira, ministro e comandante do Exército durante a ocupação tucana de Pindorama.
O que poderia ser um vale de desgraças torna-se um livro humano, alegre, quando o inglês encontra os vigaristas napolitanos. Pelas contas de Lewis, e pelos cálculos de qualquer ekipekonômica que se preze, cruzando-se os preços da comida com a renda dos napolitanos em 1944, a população da cidade deveria ter morrido de fome.
Uma orquestra tocava para uma platéia que vestia ternos feitos com a lã dos cobertores roubados aos americanos. Os músicos saíram para o intervalo e quando voltaram não tinham mais instrumentos.Uma condessa passa por um processo de desmanche social diante de Lewis. Um terço de toda a carga que desembarcava no porto era aliviado. O carro do representante do Papa rodava com pneus roubados.
O grande momento do livro se dá no dia 20 de março de 1944, o Vesuvio entrara em erupção na véspera, e Lewis foi a San Sebastiano, um vilarejo do sopé da montanha ver a descida da lava. Os moradores achavam que o santo do lugar daria conta. A lava cobriu metade das casas. Lewis percebeu que havia outro santo, coberto por um lençol, numa rua transversal. Explicaram-lhe que era San Gennaro, o protetor de Nápoles, que seria descoberto se São Sebastião faltasse. Não foi necessário. A paixão de Nápoles por seu santo deu sorte ao livro de Lewis ou, pelo menos, um ótimo assunto.

Explosão da vez
Os sábios do PT-Federal devem se precaver. A próxima explosão resultante dos desaforos do presente contra os compromissos do passado virá da Comissão dos Desaparecidos.
São sete pessoas que trabalham na tentativa de recuperar a memória e as ossadas de cerca de 120 brasileiros assassinados durante a ditadura militar. Foram crimes cometidos por ordem expressa dos comandantes militares e dos governantes da ocasião. Ao contrário do que podem supor os comissários do momento, não há palhaços nessa comissão.

Teste para Palocci
O ministro Antonio Palocci Filho dispõe de uma maneira infalível para provar que sua reforma não é tunga. Basta fixar um teto na relação entre a carga tributária e o PIB. Se o ultrapassar, vai-se embora levando consigo a turma da ekipekonômica. Como o próprio Palocci já denunciou, entre 1995 e 2002, essa sabedoria aumentou os impostos à razão de 1% ao ano.

Lula e os traíras
Um veterano sindicalista informa:
"O Lula não fez de caso pensado, mas botou uns dois ou três traíras no seu ministério. Eles já estão dando trabalho. O que eu ainda não entendi é se ele já manjou os traíras e está esperando a hora para fritá-los, ou se os ares de Brasília fizeram com que ele começasse a acreditar que os traíras podem ajudar o seu projeto. Se tem um sujeito nesse mundo que nunca foi beneficiado por traíra, ele é o Lula".
Traíra, em sindicalês, é aquele sujeito que vota pela greve na assembléia e vai contar ao patrão quem puxou a maioria.

Poesia

Armando Freitas Filho
(63 anos, autor de Máquina de Escrever - Poesia reunida e revista)

A um passante
Filho feito do que a rua apura
e junta sem refugar: ectoplasma
de panos sujos, de sacos de mercado
e latas, de arma desdentada na mão
mais o trecho do muro roído
que passa rente à linha do trem.
A vida não tem segunda via e vai
embora, terreno baldio, vala negra
mistura de céu e terra, e ainda:
plásticos pretos, catre de papelão
no meio-fio, à beira do trânsito.
Rio indo, inabalável todo
tracejado por luzes e espumas
ao pé do leque aberto de montanhas
do puro perfil do corcovado no sol posto.

Propaganda eleitoral
O candidato funga.
Flácida e fofa
figura inflada
se inflama e fala
feixe de frases
feitas, fraseado
falaz se forma
na furna da voz.

São Castilho
para todos os tricolores da velha-guarda
Vôo através da atenção
de um canto a outro: atrás
a linha fatal do último
reduto, a rede que segura
a dolorosa bola indefensável
quando cai a meta e a metáfora.
Reunidos numa só entidade
arco, flecha, arqueiro que se lança
que defende o(s) disparo(s)
o(s) tiro(s) à queima roupa
fechando o ângulo da trave
no chão, onde não prospera a grama.
Quase sempre de cinza
sobrancelhas cerradas e cenho
franzido, a separação
dos dentes da frente
o dedo mínimo cortado
e o mergulho sem fim no final.

Grande estilo
No final de setembro, numa reunião em Nova York, a embaixadora americana no Brasil, Donna Hrinak, estava em grande forma. A certa altura, lembrou que são mulheres as embaixadoras do Canadá, México e Estados Unidos no Brasil. "Somos as panteras do Nafta, e eu faço o papel da Cameron Diaz."
Em seguida uma pesquisadora americana perguntou-lhe se alguma vez ela, ao longo de sua carreira, ela se sentiu desconfortável com o machismo latino-americano. Hrinak respondeu que esse desconforto só lhe aconteceu no Departamento de Estado.

Eremildo o idiota
Eremildo é um idiota. Acredita em tudo o que o governo diz. Está convencido de que o ministro Antonio Palocci Filho e o secretário Jorge Rachid fecharão todos os propinodutos da Receita Federal.
O idiota acredita que eles explicarão à patuléia por que foi demitido o coordenador de Inteligência da instituição, Deomar Moraes.
Em dezembro de 2002, ele era um dos nomes cotados para assumir a Secretaria da Receita. (Palocci chegou a tomar referências suas junto a companheiros petistas.)
No final de maio, Moraes aposentou-se. Rachid pediu-lhe que continuasse na chefia da Inteligência da Receita, onde estava desde 1996. No dia 25 de junho, Rachid demitiu-o, sem nenhuma explicação. Palocci não teve curiosidade de perguntar ao funcionário o que pode ter provocado sua dispensa.
A administração de Rachid tem respostas de menos e silêncios demais. Daí a curiosidade em torno do disco rígido do computador do chefe da delegacia de arrecadação do Rio, José Goes Filho. Não se pode avaliar o tamanho da memória de Goes Filho. A de seu disco é de 20 gigabites e está na Polícia Federal.


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