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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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NO PLANALTO

Lula concede, à surdina, mamata previdenciária

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Um naco da indústria nacional encontrou uma maneira de fazer sumir débitos previdenciários dos computadores do governo. Coisa segura. Passa longe dos sempre arriscados guichês de fiscais desonestos. Melhor: traz a chancela de Luiz Inácio Lula da Silva.
Sob o calor do consentimento presidencial, evaporaram-se no mês passado lotes de dívidas da agroindústria com a Previdência. Referem-se ao período de 1994 a 1997. Brasília evita contabilizar o beiço. Sabe-se apenas que é milionário.
Deu-se o seguinte:
1) em 1994 (gestão Itamar Franco), o governo mandou ao Congresso projeto alterando a contribuição previdenciária de empresas dedicadas à produção rural. Em vez de 20% sobre a folha de pagamento, passariam a recolher 2,5% sobre o faturamento. Aprovada, a proposta virou lei;
2) a pedido da bancada ruralista, a mudança foi estendida à agroindústria. Também passou a recolher 2,5%. Não sobre o faturamento global, mas sobre o valor estimado de sua produção agrícola própria;
3) para setores como o sucroalcooleiro, que operam com fartura de mão-de-obra, a troca da folha salarial pela estimativa de faturamento foi negócio da China. Para a agroindústria, mais mecanizada e com folha enxuta, revelou-se presente de grego;
4) a agroindústria rachou. De um lado, empresas gerenciadoras de grandes plantações. À frente, as canavieiras. De outro, controladoras de criatórios de animais, em especial frangos e suínos;
5) em atenção ao segundo grupo, a Confederação Nacional da Indústria foi ao STF. Arguiu a inconstitucionalidade da lei. Em votação apertada, o Supremo derrubou a nova regra em 1997 (sob FHC). Pesou, entre outras, a tese de que a Constituição não prevê a estimativa de produção como base de cálculo para a contribuição previdenciária;
6) a decisão do STF impôs à Previdência a revisão dos recolhimentos feitos pela agroindústria entre 1994 e 1997. Voltou-se à contribuição sobre a folha salarial. Deu-se a encrenca;
7) aquelas empresas que, mais lucrativas, haviam recolhido em excesso, tornaram-se credoras do Estado. E obtiveram a devolução da grana. Puderam optar entre receber em moeda sonante ou na forma de compensação de débitos futuros. Aquelas firmas que, ao contrário, haviam recolhido a menos, foram intimadas a pagar a diferença. Não pagaram;
8) em 2001 (ainda FHC), de novo por obra, graça e pressão dos agroparlamentares, o Congresso aprovou a volta da contribuição previdenciária sobre o faturamento. Dessa vez, porém, teve-se o cuidado de excluir das novas regras a agroindústria mecanizada. Para as beneficiadoras de frangos, suínos, camarões e peixes continuou valendo o recolhimento sobre a folha;
9) instalou-se a atmosfera de felicidade geral. Remanescia, porém, o passivo do período 1994/ 1997. E nada de pagamento;
10) pressionado a perdoar o débito, o governo FHC fez ouvidos moucos. Ressentia-se da péssima repercussão de favores que fizera à bancada ruralista. Entre eles a rolagem de dívidas e a abertura de linha de crédito de R$ 7 bilhões, a juros de 3% ao ano. Uma taxa "de pai para filho", escreveu à época um Lula ainda na oposição;
11) no início de 2003, na surdina, os ruralistas tramaram no Congresso o arremate fatal. Materializou-se na forma de um projeto de lei que concede a remissão dos débitos do passado. Aprovado sem alarde, o perdão foi frangado pela imprensa, entretida com a tramitação das reformas constitucionais;
12) em 15 de setembro passado, um Lula agora preocupado em adensar a bancada que lhe dá suporte no Congresso sancionou o projeto. Traz o propósito anotado já no preâmbulo: "Concede remissão de débito previdenciário do período de abril de 1994 a abril de 1997". Virou lei. Foi ao "Diário Oficial" sob o número 10.736.
O repórter tentou, nos últimos 15 dias, descobrir o valor do refresco previdenciário. O Planalto não sabe. A Previdência ignora. O Congresso desconhece. Todos falam em "milhões de reais". Mas ninguém consegue fornecer a cifra exata.
Como se vê, a praça dos Três Poderes oferece ao meio empresarial formas mais astutas de apagar débitos nos computadores do Estado do que o pagamento de propinas a fiscais vira-casacas.



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