São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

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NO PLANALTO

Só um surto de anormalidade salva o Brasil

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Nada diz mais sobre o Estado brasileiro do que o estado a que chegou o brasileiro. Encontra-se afundado num pântano de normalidade. E não se dá conta da falta que lhe faz o anormal.
É com um pedido de desculpas que se irá recapitular abaixo três episódios da semana passada. Além do mau gosto que exalam, têm em comum uma incômoda aparência de trivialidade.
Freqüentaram o noticiário de modo fragmentário. Não houve quem os pusesse lado a lado, como merecem.

 
Episódio um: envolve um brasileiro simples. Severino. Não é o Cavalcanti. É um cavalgado. Severino Elias dos Santos, pedreiro, pai de sete filhos.
Saiu de casa, no bairro carioca de Padre Miguel, na noite de domingo passado. Foi atrás do sonho da aposentadoria. Documentos sob a axila, passou a madrugada na fila de um posto de atendimento do INSS.
Pesavam-lhe sobre os ombros 65 anos. A carga era adensada por problemas de pressão alta. Ainda assim, amargou espera de mais de 12 horas. Só alcançou o guichê por volta da hora do almoço de segunda-feira.
Entregou os papéis à atendente. Súbito, foi informado de que a documentação estava incompleta. Esquecera a fotocópia da carteira de identidade. Foi a uma loja defronte do posto do INSS. Enquanto esperava pela cópia, foi sacudido por um mal-estar repentino. Teve morte instantânea.
Avisada, Marlene Teixeira dos Santos, filha de Severino, encontrou-o estendido no chão, recoberto por um pano. Contemplando a vida que fluía ao redor, suspirou: "É muito descaso".
O que matou Severino não foi a doença, que afinal nem era tão grave. Entendia-se bem com a pressão alta. Medicava-se diariamente. Na verdade, morreu de fila. Morreu de desconsideração.
O ministro Amir Lando (Previdência) não disse palavra. Em nota oficial, o INSS lamentou o infortúnio. A fila do posto de Padre Miguel continua humilhando diariamente cerca de 800 Severinos. São cadáveres esperando para acontecer.
 
Episódio dois: envolve uma tribo de ancestrais. Na carta inaugural de Caminha, foram retratados assim: "Pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas".
Caminha encantou-se com a terra de Santa Cruz, "de muitos bons ares". "Porém", escreveu à coroa portuguesa, "o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar essa gente".
A "gente" não parecia clamar por salvação. O próprio Caminha notou que, embora não comessem "senão desse inhame que aqui há muito e dessa semente e frutos que a terra e as árvores de si lançam", eram "rijos e nédios".
Escasseando o inhame e as frutas, os índios passaram a depender de governos. Triste sina. Com as aranhas, cobras e onças da mata bruta sabiam lidar. Na selva de Brasília, tornaram-se presas fáceis.
Obrigados a conviver com repartições como a Funasa (Fundação Nacional de Saúde), os índios do município de Dourados (MS) assistem a um morticínio de suas crianças.
Deve-se ao repórter Hudson Corrêa a revelação de que, desde janeiro, a desnutrição ceifou a vida de 12 meninos índios em Dourados. A marca de 15 indiozinhos mortos pela fome em 2004 está na bica de ser batida.
Na terça-feira, em reunião administrativa, o ministro Humberto Costa (Saúde) disse que "uma morte é sempre preocupante e não pode ocorrer", mas "as mortes" de Dourados "estão dentro do número que normalmente acontece". Não caracterizam, disse ele, "mortandade maior do que nos anos anteriores".
Deus está em toda parte. Mas tudo leva a crer que transferiu a pasta da Saúde ao diabo, que a sub-rogou ao ex-PT. Os indiozinhos não estão morrendo de fome. Morrem de descaso. Morrem de acinte.
 
Episódio três: envolve a última novidade da política brasileira, um senhor que vem sendo reeleito ininterruptamente desde a chegada das caravelas de Cabral. Está-se falando de Severino. Agora sim, o Cavalcanti.
Descobriu-se no último domingo que o deputado é portador da SIMA (Síndrome de Mombaça Adquirida). Ao celebrar a eleição para a presidência da Câmara numa festança em João Alfredo (PE), sua terra natal, apenas seguiu as pegadas de Paes de Andrade.
Quem não se lembra? Em 1989, quando presidia a Câmara e, nessa condição, assumiu interinamente a Presidência da República, Andrade também rumou em caravana para a cidade de Mombaça (CE), seu berço.
A pequena João Alfredo saudou Severino com salvas de fogos. Saiu ao meio-fio, para vê-lo desfilar em carro aberto. Foi à beira do palanque para ouvi-lo falar. Só agora Severino cresceu em Brasília. Mas em João Alfredo ele é enorme há muito tempo.
Num discurso ponteado pelo rufar de tambores, Severino rememorou detalhes de seu convívio com os eleitores. Em 40 anos de vida pública, o deputado deve ter feito muitas coisas. Só lhe vieram à memória, porém, duas passagens.
Numa ocasião, livrou um bêbado arruaceiro de encrencas com a polícia. Indenizou as despesas do bar que o infeliz acabara de destruir. Noutra oportunidade, alcançado pelo telefone, valeu-se do prestígio do cargo para convencer um guarda a liberar um motorista infrator, que dirigia com a carteira vencida.
Ana Cavalcanti, filha de Severino, tentou conter-lhe os arroubos. Foi repreendida: "Ana, não me catuque". Natural que o deputado não entendesse o desassossego da filha. Não estava senão sendo o velho Severino de sempre, o Severino habitual.
 
Como se vê, o que envenena o Brasil é a normalidade que impregna o ar. Algo de profundamente anormal precisa acontecer para que o país seja salvo.


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