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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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ARTIGO

Por que Lula deve um pedido de desculpas a FHC

TED GOERTZEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lula tem muito pelo que pedir desculpas. Em lugar de dar ao Brasil um modelo econômico novo em folha, ele simplesmente requentou o modelo velho de Fernando Henrique Cardoso. Depois de passar oito anos criticando as propostas de FHC de reforma tributária e da Previdência, ele reconheceu que Fernando Henrique estava certo, afinal.
Ele anunciou uma campanha Fome Zero moldada no programa norte-americano de selos-alimentação, sem nem sequer mencionar que o governo de Fernando Henrique já tinha instituído programas inovadores de combate à fome e à pobreza. Em todas os setores chaves -reforma agrária, proteção ambiental, ação afirmativa e política externa-, sua política é quase impossível de se distinguir da de Fernando Henrique.
Isso pode significar que o Brasil finalmente amadureceu em termos de política partidária, tendo alcançado um amplo consenso com relação às questões mais importantes. Ninguém vence uma eleição elogiando o outro lado, e a popularidade de Fernando Henrique estava num patamar tão baixo que mesmo o candidato de seu próprio partido lhe dava reconhecimento apenas a contragosto. Lula e Fernando Henrique são velhos amigos cuja relação data da longa luta contra o regime militar. Eles têm metas semelhantes para o Brasil e são homens práticos, que não têm vontade nenhuma de afundar na defesa gloriosa de sonhos impossíveis. Após oito anos no poder, Fernando Henrique deixou o Brasil em situação significativamente melhor do que aquela em que o encontrou. Lula se sairá bem se puder dizer o mesmo dentro de quatro ou oito anos.
Se estivéssemos falando apenas de uma questão particular entre amigos, haveria pouca necessidade de um pedido de desculpas. Tanto Lula quanto FHC compreendem a retórica política, e Lula já expressou sua apreciação pela ajuda que Fernando Henrique prestou durante a transição. Mas um pedido público de desculpas seria bom para o país. Não tanto para corrigir o registro histórico, mas para ajudar os brasileiros a entender o que aconteceu com a visão de Lula de um novo modelo econômico e social capaz de transformar o país.
Durante toda a campanha eleitoral, Fernando Henrique ficou frustrado porque em nenhum momento conseguiu fazer Lula definir a que vinha em termos políticos. Lula dizia que era contra o que Fernando Henrique estava fazendo, mas nunca explicava o que ele faria em lugar disso.
Voltaria a nacionalizar a indústria? Reestruturaria a dívida? Como reduziria os juros sem aumentar a dívida e a inflação? Como aumentaria os salários sem provocar o aumento da inflação? Como implementaria e subsidiaria uma reforma agrária mais acelerada? Em resposta a essas perguntas específicas, Lula dizia apenas que se reuniria com as partes interessadas e negociaria. Em nenhum momento explicou qual seria sua própria posição.
Lula ganhou a eleição sem jamais responder de fato às perguntas de FHC. As pessoas se contentaram em votar em imagens, sem saber exatamente que políticas seriam usadas para implementá-las. A campanha do PT girou em torno de um slogan sem sentido: ""Um outro Brasil é possível".
É claro que muitos outros Brasis são possíveis. E muitos deles seriam piores do que o Brasil que temos hoje. O Brasil poderia se unir em torno de um demagogo populista, como fez a Venezuela, ou declarar a moratória, como a Argentina. Algumas vozes da esquerda que ficou para trás gostariam que o Brasil fosse uma ditadura marxista, como Cuba ou a Coréia do Norte. Quase todo o mundo gostaria que o Brasil fosse mais semelhante à Suécia, mas isso vai demorar.
A questão não é se um outro Brasil é possível, mas qual dos muitos Brasis possíveis é viável. Na minha opinião, a melhor possibilidade para o Brasil seria seguir o modelo do Chile. Não me refiro ao Chile de Allende nem ao de Pinochet, mas ao Chile democrático e socialista dos últimos 15 anos. O Chile cortou a pobreza pela metade ao mesmo tempo em que melhorou o padrão de vida de todos seus habitantes e protegeu os direitos humanos e as liberdades democráticas. O Brasil poderia fazer o mesmo. Não existe nenhum grande segredo que explique o sucesso do Chile. Este foi conquistado por meio de quatro políticas principais:
- Trabalhar duro para manter um consenso político, incluindo o envio de projetos de lei importantes aos partidos de oposição para obter os conselhos e o consentimento deles.
- Reduzir os gastos do governo de modo a manter um superávit orçamentário e reduzir a inflação.
- Aumentar os impostos para financiar o aumento dos gastos com educação, saúde, formação dos jovens e habitação para os pobres.
- Aumentar em muito o índice de investimento, incluindo os investimentos externos diretos.
Foi mais ou menos isso o que Fernando Henrique procurou fazer, e Lula está tentando fazê-lo ainda melhor. O Brasil partiu no caminho certo dez anos atrás, com o Plano Real. O país avançou por esse caminho, mas não chegou tão longe quanto esperava. Lula espera avançar mais pela mesma estrada -e vai precisar de toda a ajuda que puder conseguir. Ele vai precisar que a população mantenha a paciência quando ele topar com obstáculos e desvios no caminho. Fernando Henrique teve popularidade menor do que a de Lula principalmente porque dizia às pessoas exatamente o que estava fazendo. Lula ganhou o concurso de popularidade à base de promessas indefinidas e visões utópicas. Isso se enquadra muito bem na tradição da política latino-americana, e não há dúvida de que funcionou bem na eleição. Mas pode representar uma receita de desastre quando a população se desilude porque as promessas não podem ser cumpridas. Um pedido público de desculpas a FHC corrigiria a falsa impressão de que Lula tem um modelo novo e revolucionário para o Brasil, sem falar na ilusão de que o Brasil precisa desse modelo.


Ted Goertzel é professor de sociologia na Universidade Rutgers, em Camden, Nova Jersey, e autor de ""Fernando Henrique Cardoso e a Reconstrução da Democracia no Brasil" (Ed. Saraiva, São Paulo, 2002).

Tradução de Clara Allain


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