São Paulo, quarta, 13 de maio de 1998

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ELIO GASPARI
A enérgica repressão

A transposição das desordens produzidas pela seca para o prontuário dos dirigentes do movimento dos sem-terra é demofobia barata. É também ignorância e reflexo da falta de imaginação do andar de cima.
É demofobia porque o governo está cansado de saber que o MST tem bases frágeis no semi-árido nordestino, onde se deu boa parte dos saques. O MST é fraco no semi-árido porque não é bobo. Sabe que naquelas terras de xique-xique e bodes nem agitação prospera. Ele foi responsável, documentadamente, por pelo menos um saque, o de Gravatá, em Pernambuco. O enquadramento legal das pessoas que incitam e organizam saques é medida necessária e prudente, porém inútil para o tratamento do problema.
Pode-se prender toda a direção do MST, bem como todos os seus simpatizantes e a questão dos flagelados continuará do mesmo tamanho, assim como as terras do deputado Inocêncio Oliveira em Serra Talhada continuarão perfeitamente irrigadas. Ao contrário do governo, o deputado sabe que o problema do semi-árido não se resolve com terra, cesta de comida ou pancada. Resolve-se com água e ele arrumou a sua.
Se cadeia desse jeito em saque, a seca já teria deixado de ser problema há mais de cem anos. O nordestino esperaria o dia de São José e, sem chuva, saquearia o armazém mais próximo. Preso, comeria de graça. Tanto é melhor viver na cadeia que na caatinga seca que os 500 presos de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, resolveram jejuar duas vezes por semana para mandar comida aos flagelados.
Chega a ser comovente ouvir as declarações do ministro da Justiça, Renan Calheiros. Com gosto por frases feitas, informou o seguinte: "Não permitiremos que a indústria da seca se transforme na indústria do saque." Ou isso não quer dizer nada (o que parece ser o caso, como costuma acontecer com declarações do gênero) ou quer dizer o seguinte: "Temos a indústria da seca, que eu conheço bem porque vivo no berço irrigado da plutocracia alagoana, e não permitiremos que a turbamulta a transforme numa indústria do saque, levando consigo algo que nos pertence".
Os mitos são essenciais para a manutenção da desordem nordestina. Já houve o mito de Canudos, aquele movimento de inspiração monárquica que derrubava a cotação dos papéis brasileiros em Londres. Depois veio Lampião, o bandido que personificava a ausência do poder do Estado no semi-árido. Teve também Padim Ciço, que resolve tudo com milagres, e Francisco Julião, cujas Ligas Camponesas transformariam o Nordeste numa velha Cuba. Agora o braço demófobo do tucanato quer criar o mito do MST. Pode fazê-lo, mas valeria a pena que lessem a entrevista que FFHH deu ao jornalista Roberto Pompeu de Toledo, publicada no livro "O Presidente e o Sociólogo". Nele, o sociólogo demonstra um perfeito conhecimento do que é o MST. Chega a entendê-lo. Não diz muito de novo, simplesmente se mantém ao largo da histeria que o presidente chega a estimular.
A falta de imaginação do tucanato pode ser medida olhando-se para a memória da seca de 1877. D. Pedro 2º tinha aos seus pés um flagelo que pode ter matado meio milhão de pessoas e, em sua fala do trono de 1878, dedicou 85 palavras ao anúncio do nascimento de seu neto D. Luís, bem como ao pedido de licença da princesa Isabel, que passaria dois anos na Europa, acompanhando o tratamento de saúde do príncipe do Grão-Pará. Para a seca, 47 palavras. No ano seguinte, mandou o pau na choldra:
"É lamentável, porém, que em alguns lugares deixasse de haver segurança individual e de propriedade.(...) O governo empenha-se em combater essas causas e acredita que, cessando os efeitos daquele flagelo e mediante enérgica repressão do crime, seja mantida a segurança individual e respeitada a propriedade".
O príncipe do Grão-Pará e seu irmão, d. Luís, perderam-se na poeira do tempo. A família do imperador foi mandada de vez para a Europa (na comitiva de oficiais que entregou a d. Pedro 2º a carta de banimento estava o avô de FFHH), mas a seca de 1877 a cada dia adquire um peso maior na história nacional.
Enérgica repressão é coisa que o Estado brasileiro sabe muito bem exercitar. É rigoroso quando se saqueiam armazéns (cujos donos têm todo o direito de exigir a proteção de seu patrimônio) e tolerante quando se saqueiam os fundos públicos de financiamento (cujo dono, a Viúva, não tem quem a defenda). É mais fácil fingir que se defende a ordem prendendo o MST do que discutir que tipo de ordem se defende num lugar onde o dinheiro público é usado para canalizar água na direção de quem tem poder e dinheiro.



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