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São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

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ENTREVISTA DA 2ª

EDUARDO JORGE

Ex-deputado, agora no PV, diz que novo critério provocará "desastre" ; Ministério do Planejamento defende medida

Ex-petista diz que diminuição de orçamento é golpe contra a saúde

FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

O encontro de uma equipe econômica de idéias ortodoxas com sindicalistas que representam categorias protegidas por planos de saúde, promovido pela ascensão do PT ao poder, gerou uma das maiores ameaças ao SUS dos últimos tempos: a proposta de transferir parte do orçamento de 2004 da saúde para o programa-vitrine do governo, o Fome Zero.
A opinião é de Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho, 53, ex-deputado federal que deixou o PT há duas semanas e filiou-se ao PV.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva incluiu R$ 3,5 bilhões do Fundo de Combate à Pobreza no cálculo do mínimo que deverá gastar em ações e serviços de saúde (R$ 32,4 bilhões).
O dinheiro beneficiará principalmente o programa de alimentação. A inclusão foi feita para garantir o mínimo de aplicação na área determinado pela emenda constitucional -de que Jorge é co-autor- que vinculou verbas da saúde à arrecadação.
O problema é que o próprio Ministério da Saúde considera a manobra desrespeitosa à emenda por, na prática, retirar dinheiro de serviços públicos e ações diretas na área. A pasta não considera despesas com alimentação e saneamento como gastos em saúde.
"Essa inclusão do fundo, não tem outra palavra, isso é um golpe contra a saúde no Brasil. Isso é um golpe contra o SUS [Sistema Único de Saúde]", afirma Jorge.
A questão orçamentária pesou para a saída do PT, mas as razões não são apenas "conjunturais", disse Eduardo Jorge em entrevista em sua casa, na zona sul de São Paulo, na semana passada.
O ex-deputado preparava-se para uma viagem ao Piauí, onde acompanharia mais uma conferência de saúde. A serviço do CNS (Conselho Nacional de Saúde), ele coordena a 12ª conferência nacional do setor, que ocorre em dezembro, em Brasília.
Leia a seguir trechos da entrevista.
 
Folha - O que mudou desde a aprovação da emenda constitucional que vinculou investimentos em saúde às receitas da União, dos Estados e dos municípios?
Eduardo Jorge -
A emenda [teve três objetivos. Primeiro, aumentar um pouco os recursos, o que realmente aconteceu, tanto que o orçamento de 2002 [na verdade, o de 2001] foi recorde.
Superamos R$ 40 bilhões, o que significa R$ 260 por ano ou R$ 0,70 por pessoa por dia. O primeiro objetivo está sendo cumprido. Mesmo com os Estados descumprindo, há uma progressão.
O segundo objetivo era permitir que os secretários e ministros pudessem planejar sem correr o risco de ver uma montanha russa aparecer de uma hora para outra, de um buraco orçamentário aparecer de repente.
O terceiro objetivo é evitar a gangorra orçamentária. Um [uma esfera de governo] aumenta, outro diminui.
O quarto objetivo é evitar a exportação de pacientes. Municípios que gastavam bem eram punidos com a invasão de pacientes.
Nestes dois anos iniciais, apesar desse claudicar na fiscalização, a emenda tem ajudado. Se fosse cumprida rigorosamente, é claro que seria muito melhor. R$ 0,70 por pessoa é muito pouco.

Folha - Qual era o posicionamento histórico do PT em relação à emenda?
Jorge -
O apoio do PT foi desde a Constituinte até a aprovação da emenda [em 2000]. Quando foi votada, o Malan [Pedro Malan, ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso] estava na Argentina. Ele ligou para bloquear a votação, lutou até o último momento.
Houve uma união suprapartidária muito forte e o Ministério da Saúde nos ajudou. O doutor Adib Jatene [ex-ministro da Saúde] e o Serra [José Serra, também ex-ministro] foram os dois ministros que mais ajudaram.

Folha - Qual era sua proposta original?
Jorge -
A minha proposta original, que ainda defendo, é uma das coisas a discutir na conferência [nacional de saúde]: voltar a pensar no orçamento da seguridade como um todo, uma associação de previdência, área social e saúde. Esse orçamento está batendo nos R$ 160 bilhões.
No patamar histórico do antigo Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social, órgão extinto), o orçamento era mais ou menos 60% da previdência, 10% da área social e 30% da saúde.
Imagine se a gente conseguisse recompor o sistema de seguridade social, que foi dividido, retalhado, e mantivesse esse orçamento.
É a proposta que quero voltar a discutir, para ter mais recursos para a área e, segundo, para fortalecer a área social. Isso seria o ministério da defesa popular.
Você teria três ministérios fortes, da defesa, da economia e da defesa popular, com orçamento vinculado. Desde a época do Itamar Franco, do Fernando Henrique Cardoso, do Palocci [Antonio Palocci, ministro da Fazenda], a tática tem sido essa: dividir para reinar. Jogar um contra o outro.

Folha - Este seria um ano para pensar o que aconteceria a partir de 2004. Está prevista uma reavaliação da emenda.
Jorge -
Se o Congresso não votar [a reavaliação], continua valendo a progressão: obrigatoriedade de investir 15% [das receitas próprias, para os municípios, até 2004], 12% [para Estados] e, para a União, o crescimento do PIB mais inflação [valor do ano anterior corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto].
A revisão está escrita. Foi uma das negociações com a área econômica. Se, por algum motivo não for votada, vale o que está aí. Mas agora, em vez de avançar, temos de lutar pelo que já tínhamos garantido.

Folha - Qual será a consequência da inclusão do Fundo de Combate à Pobreza no cálculo do valor mínimo que a União terá de investir em saúde?
Jorge -
Essa inclusão do fundo, não tem outra palavra, isso é um golpe contra a saúde no Brasil. Isso é um golpe contra o SUS [Sistema Único de Saúde].
Se a Rosinha [Matheus, governadora do Rio, que também incluiu gastos sociais na conta da saúde] já está fazendo esse carnaval com o orçamento, o que vai fazer com o aval, o exemplo federal?
É um ataque frontal à emenda e ao SUS vindo de cima. Isso vai desautorizar o prefeito e o governador que estão cumprindo a legislação. E fortalecer quem não está cumprindo, como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná.
Um secretário de Saúde me perguntou: "Por que a gente vive assim, sendo ameaçado? Quer fazer uma política universalista? É a única política universalista. E o tempo todo o pessoal nos agredindo?".
Aí existe uma junção de tecnocratas, de um lado, e corporativismo, do outro.
Tecnocracia que controla o Ministério da Fazenda, que tem compromisso com o Fundo Monetário Internacional, com metas anti-sociais, que era do governo FHC e continua do mesmo jeito agora e lava as mãos de Pilatos das corporações mais poderosas, que mantêm seus planos de seguros privados, subsidiados pela renúncia fiscal do Imposto de Renda.
É o povo subsidiando os planos privados das grandes categorias, de trabalhadores e funcionários públicos, que só usam o SUS em algumas coisas muito caras. Eles não se envolvem na defesa do SUS. E esse pessoal agora está no governo.
Juntou a tecnocracia e o pessoal da área financeira com a burocracia sindical, com a elite operária e de trabalhadores que tem esse descompromisso com a política universal, que sempre esteve amparada pelo sistema suplementar.
É uma razão que explica esse sobressalto constante. As providências são tomadas por quem? Por órgãos nos quais esses setores estão ultra-representados.

Folha - O fato de o ministro da Saúde, Humberto Costa, não fazer parte do núcleo duro do governo, como Serra era na gestão FHC, pode explicar um pouco dessa fragilidade ?
Jorge -
Acho que o Ministério da Saúde tem de tomar a frente dessa luta, todo dia. Saúde é uma política universalista, precisa desse recurso e sempre vai estar em choque com a área econômica. O Ministério da Saúde não pode se furtar a estar na linha de frente da saúde.

Folha - A resposta do ministério é que, se necessário, esses R$ 3,5 bilhões do Fundo de Combate à Pobreza serão remanejados durante o ano.
Jorge -
É fácil remanejar R$ 3,5 bi? Pensa que é brincadeira? A luta tem de ser agora.

Folha - O Ministério do Planejamento entende que saneamento e alimentação podem ser consideradas despesas com saúde.
Jorge -
Isso aí é a mesma coisa no presente, no passado e no futuro. É misto de argumentação técnica e força política. E, neste momento, eu tenho a meu favor emendas constitucionais, leis e resoluções.
Portanto a lei, hoje, está comigo. Se a área econômica quiser nos derrotar, tem de mudar a lei. Do contrário, o Brasil estará fora da lei nessa questão da saúde.
Além de [a inclusão do Fome Zero no orçamento da saúde] ser contra a lei, no mérito, é absurdo, desumano o fato de ela, na prática, dar um orçamento para 2004 menor que 2003.
É sustentável uma coisa dessas? Em um governo socialista? Isso é um desastre. Você já imaginou, no ano que vem, um orçamento altamente restrito, um orçamento de R$ 0,70 por dia reduzido?
Do Amapá ao Rio Grande do Sul, vão responsabilizar o governo federal. A União é responsável por 60% dos gastos.

Folha - Isso contribuiu para sua saída do partido? Houve desentendimentos anteriores, mas isso pesou mais?
Jorge -
Tudo pesou. Não foi uma decisão irrefletida e conjuntural. Claro que isso influencia. Mas são questões muito mais gerais. Sou um deputado socialista. Claro que minha área sempre foi a social, isso influencia. Mas a luta orçamentária é permanente. Eu dizia: quando tivermos um governo nosso, um governo socialista, vai continuar havendo essa luta.

Folha - O partido tinha determinados compromissos que foram reavaliados, não só na saúde. Foi o partido que mudou muito?
Jorge -
A água que passa no rio vai mudando o tempo todo, isso é normal. Não é normal mudar de A para Z da noite para o dia.



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