São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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ELIO GASPARI

Ao andar de cima, anistia. Ao de baixo, camisinha

O prefeito Cesar Maia conseguiu duas manchetes sucessivas de "O Globo". Na primeira, revelou que as comunidades pobres da cidade continuariam se expandindo:
"O grande problema do crescimento das favelas, a partir dos anos 80, é a taxa de fertilidade da favela, superior à da não-favela".
No dia seguinte, informou que encaminhará aos vereadores um projeto de lei que regularizará as expansões feitas nas coberturas dos edifícios da cidade.
O grande problema do crescimento das favelas não são as crianças pobres. São os prefeitos, ministros e presidentes de Pindorama. Quando Cesar Maia diz que o aumento do número de crianças nascidas em favelas gera mais comunidades pobres, enuncia uma verdade estatística e um engano histórico. De fato, o crescimento demográfico das favelas é quatro vezes superior ao da cidade. Metade desse inchaço viria da reprodução dos pobres. Muita gente boa acredita que o elevado número de crianças nascidas no Nordeste é uma das causas da miséria nacional. Dona Lindu, a mãe de Lula, teve sete filhos. Todos contribuíram para o progresso de Pindorama, ora como operários, ora como diaristas.
No espaço de uma geração, de 1970 a 2003, a taxa de fertilidade nacional caiu de 5,7 filhos para 2,2. De acordo com a teoria herodiana do aumento da renda pela redução do número de capitas, a isso deveria ter correspondido alguma melhora na distribuição da riqueza nacional. O índice de Gini, termômetro da desigualdade social, estava em 0,59 em 1970. Está em 0,55. O Brasil ficou com uma taxa de fertilidade semelhante à americana e manteve uma distribuição da renda pior que a de Zâmbia.
A segunda observação de Cesar Maia dá uma pista para se entender algumas das causas desse pastelão. Ele promete regularizar as edificações das coberturas, retirando-lhes o estigma da ilegalidade. Isso lhes elevará o valor em algo entre 10% e 20%. Aos puxados do andar de cima, racionalidade, anistia e votos de bem-estar. Às casas do andar de baixo, construídas em terrenos sem titulação, descaso e votos de abstinência, camisinha ou laqueadura.
Salvo algumas iniciativas bem-sucedidas em São Paulo e em Salvador, apesar das promessas (inclusive de Lula), poucos são os governos que conseguem fazer alguma coisa para legalizar a posse dos imóveis nas comunidades pobres. Uma pesquisa do Instituto Futuro Brasil mostrou que oito em cada dez favelados paulistas moram em casa própria, mas só 14% deles conseguem legalizar suas propriedades. O economista peruano Hernando de Soto escreveu um magnífico livro sobre a esterilidade do ervanário dos pobres. ("O Mistério do Capital - Por que o Capitalismo Deu Certo no Ocidente e Fracassa nos Outros Lugares"). Mostrou que o andar de baixo do Terceiro Mundo e do falecido bloco comunista está montado num patrimônio de US$ 9,3 trilhões condenados à informalidade. Isso equivale ao valor de todas as companhias listadas nas bolsas dos 20 países mais desenvolvidos. Na conta de De Soto estão os imóveis e os pequenos negócios. Pode-se supor que as casas da patuléia representam mais de US$ 5 trilhões. Chutando, é possível que o andar de baixo de Pindorama esteja montado em algo como US$ 20 bilhões.
O problema das cidades brasileiras não é a pobreza. É a maneira como o andar de cima (e seus governantes) olham e julgam o de baixo. Há cerca de um século, Jorge Americano, jurisconsulto e memorialista paulistano, ouviu dois maganos discutindo a crise do café e guardou a lembrança do que diziam:
"Virão então os planos de salvação, como o de Domingos Jaguaribe, que aconselhou criar macacos amestrados para colher café sem pagar salário. Bastaria um bananal ao lado do cafezal e o próprio macaco se incumbia de colher também o alimento".
Serviço: o delicioso "São Paulo Naquele Tempo (1895-1915)", de Jorge Americano, está nas livrarias. Conta como, em 1912, os paulistas fantasiados de ingleses faziam a caça à raposa, sem raposa.

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