São Paulo, sábado, 13 de dezembro de 2008

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Ata "ultra-secreta" revela tensões às vésperas do AI-5

Documento mostra que militares queriam mudanças na lei antes do Ato de 68

Reunião presidida por Costa e Silva discutiu ações contra imprensa e esquerda a seis dias de discurso tido como motivo para edição do AI-5

RUBENS VALENTE
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA
SOFIA FERNANDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Entre as 10h da manhã e o início da noite de 26 de agosto de 1968, o marechal Arthur da Costa e Silva e os ministros militares e civis que formavam o CSN (Conselho de Segurança Nacional) reuniram-se no Palácio do Planalto, em Brasília, pela última vez antes de 13 de dezembro -a data em que o mesmo CSN anunciaria o AI-5.
A ata do encontro de agosto e o documento que a motivou, intitulado "Conceito Estratégico Nacional", foram classificados pela ditadura como "ultra-secretos", o mais alto grau de sigilo de um documento produzido pelo serviço público.
Em 2006, materiais do CSN foram enviados ao Arquivo Nacional de Brasília e colocados à disposição dos pesquisadores. Após 40 anos de segredo, a Folha teve acesso ao documento de 62 páginas que expõe as divisões no núcleo do governo e as reclamações sobre os políticos, a imprensa e os grupos de esquerda, que seriam golpeados meses depois.
A ata é indício a confirmar a tese levantada por historiadores de que o discurso do deputado Márcio Moreira Alves na Câmara foi apenas um pretexto usado pelos militares para tomar uma decisão definida antes de dezembro. O discurso de Alves ocorreu seis dias depois da 42ª reunião do CSN.
Diferentemente da ata do dia do AI-5, que diverge em vários pontos da íntegra da gravação da reunião, conforme apontado por historiadores, a ata de agosto não é acompanhada de áudio. O encontro começou com a leitura do rascunho do "Conceito", formulado pela ESG (Escola Superior de Guerra), que Costa e Silva descreveu como "peça fundamental na formulação da Política de Governo". Havia na sala 17 ministros do governo, como Delfim Netto (Fazenda) e Jarbas Passarinho (Trabalho), além do chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), Emílio Médici, tornado presidente da República no ano seguinte.
Para conter o que chamavam de "guerra revolucionária", que teria sido lançada pelos grupos guerrilheiros de esquerda na América Latina, os ministros passaram a sugerir modificações no texto.
Os da Marinha, Augusto Rademaker, e do Exército, Lyra Tavares, foram os mais radicais. O texto original listava os tipos de "pressão" que ameaçavam a ditadura, entre as quais a "pressão política interna", supostamente "exercida por elementos e grupos políticos nacionais (...) visando a tomada ilegítima do Poder". O texto dizia ser uma "pressão de fraco valor atual que possui razoáveis perspectivas potenciais".
Insatisfeito, Rademaker sugeriu a modificação: "Essa pressão apresenta constante e acentuado grau de periculosidade (...). Justificativa: A opinião pública, de uma maneira geral, já está mobilizada e a sua atuação está sendo desenvolvida com o apoio da corrente comuno-esquerdista".
Na versão final, prevaleceu a opinião de Rademaker. Segundo ofício igualmente "ultra-secreto" e controlado (cada peça tinha um número), também pesquisado pela Folha no Arquivo Nacional, a "pressão política interna" possuiria "um grau de periculosidade potencialmente aumentado na medida que se beneficie de outras pressões, notadamente a Pressão Comunista e a Pressão Sócio-Econômica".
Em seu pronunciamento, o general Tavares praticamente adiantou os acontecimentos de 13 de dezembro e dos atos complementares que se seguiram ao AI-5. "A legislação básica se tem mostrado ineficaz para preservar o Poder Militar dos ataques que visam a desgastá-lo em sua essência moral. (...) O Poder das comunicações, atuando livremente, para o fim de enfraquecê-lo, armando contra ele a opinião pública, pode comprometer a sua eficiência caso a lei continue ser incapaz de impedi-lo".
Médici, responsável pelo serviço de espionagem do governo, não ficou atrás. Exigiu mudanças na legislação, tais como as que vieram com AI-5. Sugeriu uma "revisão do amplo conceito das liberdades democráticas, para limitá-las dentro de faixas definidas".
Assim como em 13 de dezembro, o vice-presidente Pedro Aleixo, civil, marcou posição contrária e criticou o "Conceito", tachando-o de muito vago.
A participação de Passarinho (Trabalho) trouxe à tona divergências entre os próprios militares. Ele foi às origens do golpe de 1964 e fez um diagnóstico cáustico. "A Revolução de 64, atribuindo o poder aos militares e atuando inclusive emocionalmente em todos os setores da vida pública, com os inquéritos policiais militares, realçou os antagonismos existentes". O ministro disse que a "propriedade" da "Revolução" acabou "se diluindo nos quadros e nos postos, politizou, ainda mais, as Forças Armadas, (...) criando grupos e facções". Para Passarinho, o "Conceito" deveria incluir a "pressão militar" como um dos fatores a ameaçar o governo militar: "A nosso ver a "pressão militar" é existente e potencial, atua nos outros campos e ameaça os citados objetivos".


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