São Paulo, sábado, 13 de dezembro de 2008

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"Ato baixou um silêncio mortal na sociedade"

ANA FLOR
DA REPORTAGEM LOCAL

O AI-5 trouxe mudanças ao dia-a-dia de brasileiros que experimentaram o endurecimento do regime de formas diferentes. Entre as lembranças dos meses e anos que se seguiram, há quem fale em tempos de medo, paranóia e cerceamento; fase de limitação intelectual; um silêncio que calou a sociedade. Há também quem viu o período sob as lentes da propaganda do regime: tempos de crescimento econômico e ordem.
Estudante de Ciências Sociais na PUC em 1968, Vanya Sant'Anna sentiu no AI-5 a decretação oficial da ditadura. "Sabíamos que algo pior estava por vir", diz ela, ligada a grupos de artistas. Ela concluiu a faculdade em 1969 sem cursos que deixaram de acontecer porque professores foram afastados.
A rotina foi transformada. Vanya lembra de batidas da polícia nas ruas à noite. "Era apavorante, traumático. A gente tinha o sentimento de que à noite era melhor não dar sopa por aí, mesmo para quem não tinha nada a ver [com política]".
Ao contrário de quem deixou de freqüentar bares por medo, Vanya e seus amigos os viam como refúgio. "As pessoas se viam, você sabia que fulano não estava preso, que estava vivo". Perigoso passou a ser visitar amigos em casa. "Você podia dar o azar de estar na casa de alguém quando a polícia chegasse e, sem ter nada a ver, ser preso junto. Grupos de estudo eram vistos como subversivos".
Ela se recorda de "pessoas estranhas" que apareciam em aulas e festas. A socióloga, que por 42 anos viveu com o ator Gianfrancesco Guarnieri, lembra quando seqüestraram um cônsul em São Paulo. "Nosso jardineiro sumiu e três homens parrudos apareceram dizendo que ele estava doente e que iam substituí-lo. Eram da polícia".
Professor em Campinas, dom Antônio Celso de Queirós, hoje bispo de Catanduva, acredita que o AI-5 fez baixar "um silêncio mortal" na sociedade. "Restou apenas a indignação das pequenas conversas", diz.
Dom Antônio foi seguido e viu padres, leigos e jovens da Igreja serem perseguidos. "Eu recebia intimações, vinham me perguntar endereços de jovens de 15 anos."
Édila Pires, que voltou da Europa meses antes do ato, lamenta a mudança ocorrida na área da cultura. "Esfacelaram todo um núcleo cultural", diz. Ela lembra de livros desaparecendo de bibliotecas e de intelectuais que foram substituídos em órgãos culturais para dar lugar a militares conservadores. "Jovens deixaram de ler pensadores, de ter acesso ao mundo".
A mudança na área da educação marcou o escritor João Gilberto Noll. Estudante de Letras em Porto Alegre à época, ele decidiu deixar a universidade no início de 1969 e se mudar para o Rio. "Achava o ensino muito cerceador", diz. No Rio, chegou a dar guarida a foragidos políticos. As experiências nos primeiros tempos de AI-5 inspiraram seu primeiro conto, "Alguma Coisa Urgentemente". "Era um tempo em que se era privado de saber de coisas".
Para a dona-de-casa Elzita Santa Cruz, hoje com 95 anos, o AI-5 trouxe tristeza e preocupação. Dos dez filhos, uma foi torturada, um exilado e outro, Fernando, desapareceu. Ela deixou a família em Olinda e foi para o Rio, onde foi a quartéis à procura do filho. "As outras mães de desaparecidos não falavam nada". Da vida dedicada à família, Elzita virou uma militante dos direitos humanos.
Já a professora Christina Hubler, hoje aposentada, teve o que chama de "visão das pequenas cidades". Ela morava no interior do Rio Grande do Sul e suas impressões do pós-AI-5 foram de ordem e segurança. A opinião de que a vida havia melhorado vinha de só se ouvir notícias boas.
"O Médici tinha uma imagem boa, parecia que ele estava colocando o Brasil no lugar". Christina viveu uma situação tensa quando seu irmão mais velho -nascido na Argentina, onde vive até hoje- foi denunciado por um desafeto e preso por agentes da polícia argentina. "Lembro que pensei como eram horríveis as coisas que aconteciam na Argentina", diz. "Éramos levados pela propaganda do governo, pelo "milagre econômico". Só ficamos sabendo de torturas mais tarde".


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